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Foto: Ênio Cesar

De aleatório, Ogi não tem nada: “A intenção é que a pessoa se transporte pra dentro da música”

Assim como todos os outros discos, "Aleatoriamente"foi muito bem arquitetado ao lado de Kiko Dinucci. É sobre esse cuidado com seu trabalho que o rapper paulistano compartilha nessa conversa.

Antes de começarmos essa conversa, Rodrigo Ogi dá um salve no seu filho de que está entrando numa reunião. Do lado de cá da tela, eu também o informo da possibilidade de ouvir o choro da minha filha de dois meses. Tudo certo. É uma manhã de sexta-feira, 3 de novembro, emenda do feriado de Finados. O objetivo da troca de ideias com um dos MC’s mais relevantes do rap brasileiro era entender todo o processo de desenvolvimento do álbum “Aleatoriamente”, e também descobrir como a mente dele trabalha na transferência das ideias para o papel e o microfone.

“Faço tudo no meu tempo e de uma forma que vai me agradar antes de tudo”, afirma. “Quero escutar e estar satisfeito sem ficar querendo agradar fulano ou beltrano. Se eu não estiver satisfeito e lançar um disco sem ter a convicção que eu gosto dele, vai ser bem doloroso que talvez eu não vou conseguir nem cantar”.

Apesar do título do álbum, o cronista da cidade cinza não tem nada de aleatório. Ele cria as próprias regras e arquiteta seus projetos de forma minuciosa. O que não cabe, descarta. Isso também reflete na parceria dele com Kiko Dinucci (Metá Metá), responsável pela produção dos beats e arranjos, e na sua forma despreocupada de trabalhar com a urgência que a indústria da música pede.

“Eu nunca pensei muito em fazer essa coisa que tem funcionado no mercado de fazer mais singles. Eu prefiro lançar uma obra toda fechadinha, coesa […] Para você ter longevidade, tem que trabalhar exclusivamente a originalidade e a identidade da sua música”.

Do lançamento de “Pé no chão” para “Aleatoriamente” tem um intervalo de 7 anos. Por que todo esse tempo?

O lance é que era pra ter vindo antes. Esse disco era pra ter saído em 2020, no máximo 2021. Mas veio a pandemia e a gente decidiu segurar e não colocar ele na rua naquele momento… e acabou sendo benéfico, na verdade, porque a gente tirou algumas músicas que estavam naquele álbum e colocamos outras, entendeu!? Trabalhamos melhor a proposta, deixando ele mais enxuto, mais coeso.

Ele já estava pronto na época?

Não! A gente começou fazer em 2019… 2021 já tinha várias faixas feitas, mas tivemos que dar uma desacelerada porque vimos que o negócio não ia andar e a coisa (pandemia) ia continuar por mais um tempo… também tiveram outros fatores. Eu sou um cara bem chato com as coisas que eu crio. Sempre estou ali ouvindo e ouvindo de novo. Como faço várias músicas, tenho também que fazer a peneira… daí, tem horas que acho que está bom, outras vezes acho que precisa ser mudado. O Kiko Dinucci, que é o produtor, também entrou em turnê com a Juçara Marçal e ficaram viajando pela Europa… então, várias coisas aconteceram, mas acho que foi o tempo certo. Eu pretendo não demorar mais tanto tempo pra lançar um disco.

Você disse que se cobra muito nos seus trabalhos… chegou a refazer, colocar e tirar músicas?

Muitas vezes, meu mano! Devo ter feito umas 30 músicas… várias eu descartei, aí a gente chegou no processo final de escolher 14 faixas, e nos últimos minutos decidimos tirar duas que não conversavam tanto com o disco. E aí, deixamos só 12. Era pra ter saído com 14, depois a gente pensou em 13, mas fechamos em 12. Fora as outras que eu descartei e nunca vou lançar. Talvez alguma eu utilize parte de algum verso em alguma outra música, mas lançar como single não. Eu tenho esse lance de se não estiver satisfeito com a música, prefiro não lançar. Hoje, eu penso assim mais ainda.

 

“Faço tudo no meu tempo e de uma forma que vai me agradar antes de tudo. Quero escutar e estar satisfeito sem ficar querendo agradar fulano ou beltrano. Se eu não estiver satisfeito e lançar um disco sem ter a convicção que eu gosto dele, vai ser bem doloroso que talvez eu não vou conseguir nem cantar”. 

 

Mas você descarta, aperta delete, ou deixa ali na gaveta para revisitar em algum momento?

Ela fica guardada ali, mas provavelmente não será lançada nunca ou eu pego algum verso pra usar em outra.

Dá pra fazer uma reciclagem pegando a peça de uma música para colocar em outra…

Exatamente! Dá pra fazer isso… tipo: eu estou fazendo uma música e tem o pedaço daquela que estava guardada que casa. Aí junto tudo pra criar algo novo.

As suas letras servem como roteiro, colocando o ouvinte dentro do cenário. Ao invés de fazer música, discos, já pensou em fazer filmes? E de que forma essas composições são feitas… de onde vem as inspirações?

Então, mano. Esse lance da escrita nesse estilo é uma coisa que entendi que é natural. Isso é desde criança, o lance de contar história. A minha avó materna contava muitas histórias… eu peguei isso dela e contava histórias pra molecadinha no meu bairro. As minhas primeiras redações, quando eu comecei a ser alfabetizado, eram contando histórias. Então, sempre foi assim. Desde pequeno minha mãe sempre me incentivou a ler, e isso foi vindo naturalmente. Agora, tem faixas que eu roteirizo numa coisa antes. Tipo: vou começar falando disso, depois nessa parte eu trago aquilo e em outra segue para outro caminho. Já outras faixas eu começo no freestyle mesmo, escrevendo as primeiras linhas e o resto vai fluindo… eu procuro, como você falou, fazer com que quem esteja ouvindo imagine bem a cena, entre nela. A intenção é que a pessoa se transporte para dentro da música. Fazer filme é um grande sonho, torço para que aconteça um dia, mas não sei por onde começar. Já me perguntaram também se eu não tenho vontade de escrever um livro… eu acho que não tenho gabarito pra isso. Preciso melhorar muito mais pra me meter a escrever um livro… posso estar errado, mas acho que preciso me aperfeiçoar mais, treinar mais, fazer mais coisas… mas é uma vontade que tenho sim. Espero que isso algum dia aconteça.

Você se daria muito bem tanto como roteirista quanto como escritor, em diferentes gêneros. A sua forma de escrita dá uma visão ampla para quem está te ouvindo ou lendo. E isso, o storytelling, está meio escasso no rap brasileiro…

Acho que esse lance também, além da minha vó e minha mãe terem me influenciado a ler… o rap nacional dos anos 90 tinha muito isso. O Sistema Negro com a música “Cada um por si”, que os caras vem descrevendo como o cara entrou para aquilo tudo… o Sistema Negro fazia muito isso, as primeiras do Thaíde tinham algumas e o próprio Racionais MC’s. O Brown pra mim, em “Tô ouvindo alguém me chamar”, faz um storytelling incrível, como também faz em “Diário de um detento” e em tantas outras. Talvez isso tenha se perdido hoje no rap nacional, mas acho que sempre foi uma característica ali do começo. E isso me influenciou muito.

 

Foto: Ênio Cesar

 

O Kiko Dinucci não é especificamente um produtor de rap, mas a parceria de vocês deu muito certo e trouxe um diferencial para o seu rap. Não tem como te rotular porque traz uma variedade de estilos, texturas e elementos. Como surgiu essa parceria?

Eu conheço o Kiko há mais ou menos um dez anos e a gente já vinha conversando sobre trabalhar juntos. A primeira vez que trabalhei com ele foi no disco do Tiago França, que é um disco todo baseado no livro do João Antônio, o meu escritor favorito, chamado “Malagueta, Perus e Bacanas”. E o Kiko sabia que eu gostava muito do João Antônio e me convidou para participar da música “Caso do Bacalau” (2014)… daí pra frente a gente veio conversando. Ele colaborou muito comigo no “RÁ”… ai nisso colaborei numa música do disco dele, que é a “Veneno”, depois escrevi uma letra para o disco da Juçara Marçal, “Delta Estácio Blues”, que é “Crash”… e a gente já estava conversando sobre fazer um disco juntos alguns anos antes. Aí, depois, eu comecei analisar a minha obra já estava me sentindo desconfortável na minha zona de conforto. Então, eu procurei ele justamente pra fazer uma coisa que fosse diferente de tudo que eu já tinha feito. O processo em si, a gente levou alguns meses para começar a se entender melhor… por exemplo, eu criava as coisas em cima de loops, melodias e pedaços de letras, e mandava pra ele. No começo, ele ouvia e falava: “cara, se eu for produzir em cima disso vai sair mais parecido com coisas que você já fez, sacou!? Acho que não faz sentido você me convidar pra fazer esse disco seguindo algo que você já fez… nem é algo que eu consiga fazer porque meu estilo é outro”. E aí, a gente começou a se entender. Então, eu criava coisas em cima de loops de baterias só, e ele ia desconstruindo tudo, colocando do jeito dele e mantendo somente as minhas melodias e os flows. Foi assim que a gente conseguiu ter sintonia. O negócio fluiu perfeitamente.

Você chegou a produzir também junto ou só levava suas partes para o Kiko construir toda a cena?

Teve coisas que eu produzi bem pouco… tipo, a gente manteve algumas baterias e samples meus que eram bem bacanas, e que ele deu um jeito de não aparecer (não tem como ser detectado), mas “Aleatoriamente” foi feito todo por ele.

Por que do título “Aleatoriamente”?

Então, eu e o Kiko pensamos em vários títulos, vários nomes. Eu tenho uma certa dificuldade de nomear os meus trabalhos. Geralmente, o nome dos discos chegam aos 45 do segundo tempo. “Crônicas da Cidade Cinza” foi assim, “Rá” foi assim, o EP “Pé no Chão” foi o que eu achei o título mais fácil. E esse aqui estava indo para um caminho, e aí eu comecei a fazer a música “Aleatoriamente” e a gente achou que esse nome conversava com a atmosfera do disco. E aí, batemos o martelo e a gente decidiu. Mas isso veio depois que todas as faixas estavam prontas.

 

“Para você ter longevidade, tem que trabalhar exclusivamente a originalidade e a identidade da sua música”.

 

Escolher uma música para ser destaque deve ser um trabalho difícil porque todas são importantes, meio que filhas do autor…

… é, tem esse lance… tanto é que esse disco não teve single. A gente pensou em colocar uma música como single, mas falamos: “Cara, de repente a galera acha que o disco vai vir nessa linha”… assim, aos 45 do segundo tempo a gente decidiu lançar inteiro. O planejamento era soltar um single e 20 dias depois o disco, tá ligado!? No final das contas acabamos lançando tudo de uma vez… é um disco que você pode ouvir uma faixa avulsa, mas ele faz mais sentido quando você escuta ele da primeira à última faixa. Até os visualizers, que foram feitos pelo pessoal da Podvideo, o Larosa e a equipe dele toda, fizeram muito sentido. Deu mais uma camada… não tinha uma faixa carro-chefe porque a gente pensava na unidade toda do álbum.

Quase todas as parcerias escolhidas não fazem parte do rap, o que também deu um outro tempero. Pensando também que para que o trabalho flua tem que ter uma conexão entre você e o convidado… além de escrever sua parte, você também escrevia para as participações ou deixou eles à vontade para trazer as ideias?

A Juçara Marçal desde o começo eu já falava que queria ela no disco, porque é uma cantora que admiro muito. Ela ia estar em uma outra faixa, a princípio, só que talvez aquela não fosse muito a linha dela. Então, escolheu outra e acabou fazendo duas: “Chegou sua vez” e a “Ufa”. O Russo Passapusso foi também aos 45… eu já tinha feito a letra da música inteira, e falei: “cara, aqui nessa música caberia alguém e penso no Russo”. Conversei com o Kiko, ele achou ótima a ideia. Entrei em contato com o Russo pelo telefone e ele foi super generoso, solicito. Mandei a música e ele gostou. Mas estava longe de Salvador, no interior da Bahia, e ia voltar numa segunda-feira. Quando ele chegou já me mandou a letra gravada… o Siba foi um lance em que o Kiko teve a ideia. O Tiago França é outro parceirão. A Alana Ananias fez uma bateria ali na “Metamorfose”. E o único cara que escreveu o próprio verso foi o Don L. Nessa música, a gente pensou nele também e deixamos ele à vontade, inclusive na virada do beat. O Don L é um cara que eu admiro muito, está no Top 5 dos meus favoritos, e chegou majestosamente na faixa… era pra ter outros caras do rap. Conversei com alguns, teve gente que chegou até a mandar versos, mas eu achei que não estava conversando muito com a proposta, tanto que a faixa acabou nem entrando. Outros não conseguiram fazer por falta de tempo, da correria mesmo… não posso esquecer de falar da Tulipa Ruiz que é uma cantora que eu admiro demais também.

Como você falou tem que ter essa conexão… às vezes você pede um verso para alguém e não vem do jeito que você quer.

Acontece, e tá tudo bem também. Depois a gente tenta fazer outra música. Tem que ter essa sintonia.

Você é de poucos singles. Prefere o disco porque todas as ideias se conectam e um single não vai entregar tudo ou não é uma regra?

Geralmente eu escrevo para que as músicas se conectem. O disco tem esse lance… as músicas são continuações de outra. Por exemplo: “Chegou sua vez” a continuação dela é “Vai”; “Cupido”, a continuação é “Eu pergunto por você”… e elas vão conversando entre si. Eu nunca pensei muito em fazer essa coisa que tem funcionado no mercado de fazer mais singles. Eu prefiro lançar uma obra toda fechadinha, coesa. Isso não quer dizer que descarte lançar singles. Esse ano aqui eu quero soltar algumas coisas que tenho, e acabaram ficando avulsas. Quero mostrar isso pro mundo porque acho que vale a pena.

Foto: Ênio Cesar

O público sempre pede coisas novas?

Tem, cara. Amigos, o pessoal da internet que acompanha o meu trabalho… tem gente que achou que eu tinha parado de fazer música, abandonado, mas eu tô o tempo inteiro trabalhando em alguma coisa. Mas muitas vezes é aquilo, voltando até no lance do título, de repente eu penso no título de um disco e lá na frente acho que não vai fazer sentido, e assim funciona com as músicas. Eu já estou trabalhando num próximo projeto, fiquei aqui duas semanas achando a sonoridade que eu quero que esse próximo trabalho tenha. Criei mais ou menos umas 30 faixas com melodias e flows, e pensando nas temáticas já. Dessas 30 eu já fiz uma peneira, e ficaram 10. E dessas 10 fiz outra peneira e ficaram 7 que realmente a sonoridade está me agradando bastante. É aquilo que eu falei… às vezes gosto muito de uma música e pode ser que daqui 3 meses ela não seja tão agradável.

Mas esse disco você pretende soltar no começo de 2024 ou vai jogar mais para frente?

Quero lançar em 2025. Ainda vou continuar trabalhando nesse disco novo, fazendo vários shows que já estão fechados para o ano que vem. Acho que lançar outro álbum em 2024 é meio que dar um tiro no pé, porque tem que dar um tempo pra galera absorver. Lançar um disco por ano pra mim não funciona.

Os seus sons levam um tempo para a galera digerir. Às vezes alguém solta um disco e depois de algumas horas estão dizendo que é o melhor do ano. Só que as pessoas não tiveram o tempo necessário para sacar todo o conteúdo que tem ali. Você segue por essa linha com músicas mais densas que é necessário ouvir várias vezes para pegar as ideias.

São várias camadas. Muitas pessoas vem conversar comigo e pergunta: “Você estava falando disso nessa música?” Eu falo: “Não! Se você reparar é sobre outra coisa. Isso que você entendeu, eu falei só num trecho, que é um assunto complementar”. Isso é uma coisa natural que eu vou escrevendo, não é nada muito pensado. Abre interpretação para várias coisas… depois que a música é lançada já não tá mais no meu controle. Aí, a interpretação vai de cada um. Ouvindo de primeira, você não consegue captar tudo.

Isso também acontece por causa da velocidade da internet. Você acaba de lançar um disco ou uma música, e na semana seguinte estão perguntando quando vai ser lançado um novo porque acham que aquele já está velho.

Essa é uma forma que eu não consigo trabalhar. Meu processo é mais íntimo e mais lento devido a isso. Tenho que estar lapidando a parada… e também não me preocupo tanto com essa coisa mercadológica. Faço tudo no meu tempo e de uma forma que vai me agradar antes de tudo. Quero escutar e estar satisfeito sem ficar querendo agradar fulano ou beltrano. Se eu não estiver satisfeito e lançar um disco sem ter a convicção que eu gosto dele, vai ser bem doloroso que talvez eu não vou conseguir nem cantar.

Como você tem observado o cenário atual do rap brasileiro?

Cara, eu já imaginava isso lá atrás. A única coisa que me incomoda um pouco é esse lance de falta de originalidade… não estou generalizando porque tem muitos artistas novos que são excelentes. Não dá pra dizer que a coisa tá perdida (longe disso). Mas acho que às vezes falta originalidade. Virou uma coisa feita como se estivesse fritando pastel. Tipo: “Eu vou fazer essa música, usar as mesmas palavras, esses beats que são parecidos com outros”… aí você ouve a música de fulano, de beltrano, e sicrano, e todas elas são muito parecidas liricamente, musicalmente… e aí, acho que a originalidade se perdeu, não completamente, porque tem artistas novos que são muito originais. Mas acho que a maioria está tentando uma fórmula pra atingir o objetivo. Mas ao meu ver, na minha opinião, o caminho não é esse. Para você ter longevidade, tem que trabalhar exclusivamente a originalidade e a identidade da sua música.

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