Uma fila de quase 300 metros se estendia a partir da entrada principal da audio, em São Paulo. O andar dela é lento. Mas teve quem se apressou para chegar bem mais cedo do que o esperado para uma noitada. Enquanto alguns esperavam pacientemente a vez de entregar o bilhete, outros já curtiam a seleção de Tago Oli, que fervia a pista com sequências gringas explosivas.
Esse esquenta já preparava o terreno para o que viria na sequência. Todos estavam na expectativa para ver BK’ em ação. O sold old dos ingressos não era uma mera coincidência, tendo em vista que a expectativa para vê-lo aumentou consideravelmente após a estreia da turnê do álbum ICARUS na Fundição Progresso, no Rio de Janeiro. Muito se falava da descida dele (como um anjo), porém, pairava no ar a impossibilidade do mesmo acontecer por questões técnicas, principalmente pela falta de espaço.
Quando as luzes se apagaram e a cortina fechou de vez, o frenesi começa. Quem estava na parte externa, logo correu para dentro, e tentou encontrar algum espaço visível. Perto de 1h da manhã, o cenário foi revelado. Em cada um dos lados do palco tinha uma estrutura que simulava os arcos da lapa. O meio ficou aberto para que fosse possível observar no telão as projeções em tons avermelhados que reproduziam pontos icônicos da cidade do Rio de Janeiro (criados digitalmente) e também anunciavam o início de cada um dos 5 atos.
O que se cogitava nos bastidores aconteceu na prática. Ao invés do próprio BK’ interpretar na abertura “O Voo de Ícaro” – inspirado na obra de Jacob Peter Gowy -, o papel ficou à cargo da arte. Quando ele desce, o êxtase toma conta do ambiente e as luzes dos celulares apontados ganham destaque no espaço (antes) escuro.
É tudo muito artístico, cênico, impactante. Dos dançarinos vestidos de preto e com máscaras brancas, presentes em períodos específicos, aos backings vocals, que de tempos em tempos aparecem como um coro gospel, passando pelo uso da inteligência artificial para trazer de volta o rosto do pequeno Abebe Bikila brasileiro cantando o refrão de “Continuação de um Sonho”, o conjunto impressiona.
Guardadas as devidas proporções, a produção tem uma certa proximidade com o que Kendrick Lamar fez na “The Big Steppers Tour” em Paris. O roteiro foi muito bem desenhado para que a história fosse contada de maneira coesa, seja musicalmente, nos efeitos visuais e/ou nos figurinos, escolhidos pelos stylists Raphael Pereira, Mateus Mello e Vitor Christovam.
Mesmo complementando o repertório de 24 músicas com algumas dos álbuns anteriores – Cidade do Pecado (2021), O Líder Em Movimento (2020), Gigantes (2018) e Castelos & Ruínas (2016) -, BK’ mantém a coerência nas ideias. Também não deixa a temperatura cair. Nas mais tranquilas, como “Em Nome do Que eu Sinto”, ele consegue segurar a energia, e naquelas efusivas, tipo “Cidade do Pecado”, “Vivos”, “Universo” e “Bloco 7”, faz com que ela ultrapasse os limites de forma considerável.
Quando chega com “Foto armado”, JXNV$ chama a roda. Logo é atendido e o bate cabeça se forma. Esse é um dos vários pontos altos. Outros desses incluem a presença dos convidados: Bebé Salvego, Julia Mestre e Luccas Carlos. O último é unanimidade. Quando entra para cantar “Planos” e “Músicas de Amor Nunca Mais”, leva o público a histeria. Assim como a parceria com o seu produtor, a união de BK’ e Carlos é sempre assertiva nos sons e no palco. Existe um entrosamento, química, conexão. E o público gosta dessa junção. Tanto é que quase imploram para que os dois continuem.
Tão impecável quanto a performance foi a devoção daqueles que tiraram a noite para assistir a descida de Ícaro e a subida do sarrafo. Em cada uma das músicas, o MC é acompanhado fervorosamente pelas vozes, o movimento dos corpos e a emoção dos presentes. Um dos que cantava a plenos pulmões era Emicida (Felipe Mascari do HipHopDX Brasil capturou a imagem dele cantando “Universo”). Já o DJ KL Jay (Racionais MC’s) observava com atenção e serenidade. E ambos receberam os agradecimentos por serem referências.
Nas 2 horas de apresentação foi possível observar que BK’ não faltou às aulas nem se contentou com a graduação. Fez seu mestrado e, de alguma forma, virou professor. Elevou o nível artístico do que até então podia ser considerado um verdadeiro show de rap.
*Foto de capa: Felipe Mascari