Assim como acontece com a grande maioria de artistas pretos e periféricos, a igreja evangélica teve um papel fundamental na formação musical de Shuna e Gian Pedro (GP). Mas apesar de dar oportunidades para o exercício da arte, a religião também aprisiona com suas regras [que geralmente são criadas a partir de interpretações equivocadas do livro “sagrado”]. Essa limitação fez com que os crias de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, se afastassem dos dogmas religiosos para alçarem voos mais altos. O “desligamento” não foi da noite para o dia, mas aconteceu.
“Por muito tempo, a gente permaneceu ali firme seguindo os preceitos, e o GP sempre teve esse sonho de fazer rap, fazer umas paradas assim, se lançar no mundo… Então, tipo assim, eu ficava pensando: eu preciso ficar aqui para fazer músicas e tocar o coração de Jesus e das pessoas… eu preciso fazer música na igreja senão vou me corromper”, observou Shuna na conversa que tivemos no Per Raps Cast, na companhia de GP e Edu Ribas. “Era tipo um pecado fazer música sem falar de Deus e Jesus, tá errado, mano. Não adianta fazer música de protesto… se não falou de Jesus é do diabo. A gente era meio privado de fazer certas coisas, porque era pecado”.
Com a bagagem carregada de referências, eles se jogaram. A caótica Japeri, linha de trem que liga as estações de Nova Iguaçu e Central do Brasil, se tornou o ponto de partida. O contato diário com o público, apesar dos desafios, se tornou essencial para decidirem que a vida seria regida pela música. Ali, em 2017, o YOÙN (na língua crioula haitiana significa “Um só) iniciou suas atividades. A junção de vivências ajudou a formatar a estética. E ela não se limita apenas na sonoridade. Faz parte de todo um conjunto, que se estende ao jeito de se vestirem, a construção dos audiovisuais, a forma como interpretam as composições e como se comunicam.
Foi essa singularidade que conquistou os ouvidos dos espectadores dos trens e metrôs, e daqueles que tiveram o primeiro contato no YouTube com o videoclipe de “Meu Grande Amor”, que ultrapassa 1 milhão de visualizações, “Nova York” e “Só Love”. Todas elas têm uma temática romântica, mas são extremamente políticas (não no sentido partidário). Esse viés se faz presente na resistência de dois homens pretos, de periferia, que conseguiram furar a bolha cantando sobre amor com sensibilidade, e também no direcionamento de cada um dos seus vídeos, que possuem narrativas sociais e de protesto contra o racismo estrutural. Reflete muito bem a realidade da comunidade afro-brasileira, porém, não só da dor. A celebração das conquistas e o sonho de ocupar espaços pouco acessados, como um campo de golf, também se faz presente nesse enredo da vida real (o visual de Follow Me segue nessa direção).
“A forma que a gente tem de militar e protestar hoje sem se equivocar e dizer mais do que sabe (eu tenho muito essa preocupação de não ficar falando só por falar). A nossa forma de entregar e de dar um recado bem forte é com a música, com a arte. A mensagem que a gente quer passar é que assim como a gente conseguiu chegar em algum lugar, outros também podem chegar”, observa Shuna, que é complementado por GP: “A gente quer colocar muito na cabeça das pessoas que é possível e proporcionar essa possibilidade no coração das pessoas… dar uma certas esperança”.
Essa visão faz parte da base de “BXD IN JAZZ”. Nada está explícito. É preciso observar com atenção para identificar as mensagens. Algumas delas estão codificadas. Isso não quer dizer que o disco seja complexo. Pelo contrário, possui a simplicidade necessária para ser apreciado em diferentes momentos, por pessoas de estilos distintos. Está estruturado no jazz, mas também pode ser colocado na prateleira do R&B, soul, rap, MPB (também conhecida como Música Preta Brasileira). Possui excentricidade ao mesmo tempo que é popular, da rua. Essa construção mostra que para a arte não há limites.
Ao representar sua área, a Baixada Fluminense, com o jass moderno brasileiro (sempre expressado pelos cantores no estilo clássico de escrita, que na gíria dos negros significava o “fazer amor”) YOÙN abre outras possibilidades. Impossível colocá-lo em qualquer tipo de caixa. É a música HOT (nome dado ao jazz, antes dele ser batizado) na sua mais pura essência: espiritual, subversiva, sensual e sem data de validade.
“Jazz é uma coisa que é do gueto e a nossa clássica, vamos dizer assim… a música clássica dos pretos é o jazz. Então, se tem um teor muito glamuroso quando se fala JAZZ e você coloca Baixada perto, é querendo dar importância que o lugar merece. Querendo dizer que aqui existe o jass, não que ele seja completamente de jass mas ele representa a excelência da nossa música. A gente quer dizer que aqui (na Baixada Fluminense) tem qualidade.., cai pra cá, vem ver” […] O conceito está todo amarrado em passar uma mensagem primeiramente para a nossa Baixada Fluminense e dela pro mundo”.
Escute BXD IN JAZZ
*Fotos: Pedro Napolitano