Antes de finalizar sua apresentação em um festival de música gospel em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brunno Ramos disse convicto: “O trap gospel existe”. Imediatamente, essa afirmação fez barulho tanto dentro quanto fora da comunidade evangélica. “Foi um desabafo”, diz ele. “Mas não era pra mostrar que realmente existe uma vertente evangélica do trap, mas que tem uma rapaziada crente e de quebrada que faz música pra Deus e mostra o que vive através do trap.”
Aos 27 anos, o MC nascido no bairro Lauzane Paulista, em São Paulo, é um dos nomes que está dando um novo fôlego ao rap gospel. Só no Spotify, Brunno tem quase 200 mil ouvintes por mês e já acumula mais de 15 milhões de visualizações no Youtube com os vídeos de “Famoso Galileu” (2018) e “Em Cima da Laje”( 2022). Os trappers 2Metro, Victin, Carolina Murback e Nesk Only também fazem parte da linha de frente desse levante do rap cristão, que teve a sua melhor fase entre o final dos anos 1990 e a década de 2010.
“Existia uma cena forte, mas de 2010 pra frente a gente sentiu muita falta de alguém no rap gospel que tivesse fazendo uma parada atual”, diz Nesk. “O ano de 2023 foi essencial para crescermos novamente. Graças a Deus, o movimento tem ganhado uma proporção grande e incentivado uma molecada a também começar a fazer”.
Na sua era de ouro, mesmo com letras de teor religioso, o rap cristão circulava fora dos limites da igreja. O objetivo principal naquele período era evangelizar jovens, principalmente periféricos, para levá-los a uma possível conversão. E por falarem diretamente com as ruas, Pregador Luo, Dj Alpiste, Ao Cubo, R.E.P, Fex Bandollero, X-Barão, Tina e Provérbios X – para citar alguns – conseguiram chegar onde os hinos e louvores tradicionais dificilmente entrariam. Também ganharam respeito e admiração por quem fazia (na linguagem evangélica) o rap secular (ou do mundo) e o seu público.
Por esse reconhecimento, os MC’s do gospel também dividiam palco e participavam de músicas com artistas “seculares”. O Pregador Luo, por exemplo, foi quem abriu a histórica apresentação dos Racionais MC’s no VMB (da MTV) de 1998, participou de programas de TV, como Caldeirão do Huck e Raul Gil, foi capa da revista Rap Brasil – na época, a principal publicação do gênero no Brasil -, ao lado do Alpiste e Ao Cubo, e da Rap Nacional, além de vencer o Hutúz, importante prêmio do hip hop brasileiro, na categoria de Álbum do Ano com “2 Vinda”, do Apocalipse 16 (APC 16).
“Nos anos 2000 havia uma cena forte, encabeçada pelo APC 16, principalmente, mas com vários outros grupos em ascensão e muitos MC’s solo surgindo a partir da segunda metade dessa década”, diz Fex Bandollero, que foi um dos integrantes do grupo Filosofia de Rua. “As igrejas e locais comuns ao rap também recepcionavam da mesma forma a participação desta vertente. Mas os pastores viram como um grande chamariz, para a juventude, e o rap gospel então passa de vilão da década de noventa, a “mocinho resgatador” de 2000 pra frente.
Mesmo sendo abraçado e usado como estratégia de pregação do evangelho de Cristo, o gênero e seus porta-vozes não ficaram isentos do preconceito e censura. A oportunidade para ministrarem através do rap estava restrita aos cultos de jovens ou evangelismo nas ruas. Mas para não depender única e exclusivamente do pequeno espaço disponibilizado, e ter mais liberdade, tanto na vestimenta quanto na linguagem, produtores, MC’s, DJ’s e bboys se juntaram para criar festas e festivais próprios em São Paulo, Rio de Janeiro e Florianópolis (SC): Black Gospel Party, Black Gospel na Lona, Crewolada, Natal Black, Rap Day, Pretinhos de Jesus, Gospel Night, Banca de Rap Cristão (BRC), Black Gospel Live.
Apesar dessa efervescência, a resistência foi baixando a guarda. Com o desgaste e a falta de apoio dos líderes, investimentos, desinteresses, visão mercadológica e/ou por conta do mercado gospel que viu em outros gêneros, como o worship, uma melhor possibilidade de receita, o rap perdeu força nos primeiros anos da década de 2010. Naquele período, o Pregador Luo assinou com a Universal Music, e o DJ Alpiste fechou com a Sony. Mas em pouco tempo, o segundo sairia descontente da gravadora por acreditar que não deram a atenção que o seu trabalho merecia.
“Infelizmente o trabalho da Sony comigo deixou muito a desejar”, afirmou ele em 2012 ao Gospel Beat. “Isso deve-se ao fato que a maioria das gravadoras sejam gospel ou não, não estarem preparadas para trabalhar no segmento de rap, prometem muita coisa e não cumprem nem a metade e nisso o maior prejudicado é o artista que acredita, mas não vê seu trabalho ter o devido valor e respeito, sendo assim, ficar independente ainda é a melhor opção pra quem faz rap cristão”.
DO LIMBO AO FENÔMENO DO TRAP GOSPEL
Então com 18 anos de carreira, em 2013, o rapper X-Barão (Provérbio-X) decidiu se retirar de vez do gospel. De Planaltina (DF), mas domiciliado em São Paulo por um tempo, ele fazia parte da Renascer em Cristo e apresentava o programa Gospel Rap, na Gospel FM (de propriedade da Renascer). Ligado à igreja de Estevam e Sônia Hernandes, ele foi informado de que não teria mais apoio para tocar seus projetos.
Na época, ele me disse em entrevista feita por telefone para o Gospel Beat que as “igrejas valorizam quem dá retorno financeiro”.“Os caras pegam nossa história e joga no lixo, eles valorizam o que dá dinheiro e quem tem um retorno, que tem o auxílio de uma gravadora”, afirmou. “Hoje eu não tenho uma gravadora, então não consigo “brigar” com os grandes nomes da música gospel de hoje. Quando eu digo “brigar”, é ter o mesmo espaço que eles têm”.
Aos poucos, não só Barão como quase todos os outros rappers, perderam espaço dentro das igrejas e nas rádios, TV’s e gravadoras de propriedade delas. Por esse e outros motivos, o rap gospel ficou no limbo. Perdeu força. Na visão de Fex, grande parte da igreja brasileira abandonou a black music, que há anos influenciava as músicas evangélicas. “Embranqueceram os louvores”, observa. “O que já era até então suportado, foi sufocado por completo. Daí o povo daqui ficou mais Hillsong e menos Kirk Franklin. E o rap menos ainda”.
Passados os anos, outra geração surgiu. Dentro das igrejas não foi diferente. Adolescentes cristãos e periféricos influenciados por artistas que ajudaram a escrever a história do rap gospel, começaram a movimentar novamente o cenário. Com o trap, eles têm conquistado números expressivos de streaming, assinado com grandes gravadoras e chamado para si a responsabilidade de pregar o evangelho. Porém, a diferença entre as duas gerações, segundo o rapper L-TON, do R.E.P, é que as letras atuais estão mais voltadas para quem está dentro da igreja.
“A geração ano 2000 queria falar com as ruas, com quem escutava rap. Então, a gente usava as gírias, as linguagens da rua pra falar sobre Cristo, sobre o evangelho”, reflete L-TON. Também não nos limitávamos a um único estilo do rap. Tinha desde o boom bap, ragga, dirty south… existia uma vivência da cultura hip hop. Se você ouvia Digital Bomb, Shekinah Rap, Biork e Fex Bandollero rimando era sobre mudar a visão dos caras que pensavam em morrer tentando. Quando a Tina rimava, era sobre a mulher que tá na luta pra construir uma vida. A Dona Kelly, do Ao Cubo, a mesma coisa”.
Influenciado por aqueles que vieram antes, Nesk Only é um dos trappers cristãos mais ouvidos nas plataformas digitais, tendo em média mais de 300 mil ouvintes mensais, ficando atrás apenas de Victin, Pregador Luo e 2Metro – que superou os 500 mil ouvintes por mês. Antes de assumir de vez o gospel no início de 2023, ele soltou mais de 30 sons de trap e chegou a abrir shows para o Teto, Matuê e Costa Gold. Mesmo assim, o MC diz que estava incomodado com os ambientes que circulava.
Foi depois de muitas orações da sua família, que ele afirma ter recebido a confirmação de que era pra “meter marcha no gospel”. “Eu nunca cantei sobre drogas, crimes e sexo nas minhas letras, era mais uma reflexão de vida, o meu ponto de vista sobre o mundo”. Para ele, a migração foi tranquila, e quem o acompanhava não sentiu tanto o impacto porque suas músicas já seguiam uma linha distinta do que se abordava no trap. “As músicas são relacionadas as minhas vivências, mas também tem um contexto bíblico”, observa.
PRECONCEITOS E DESAFIOS DENTRO E FORA DA IGREJA
Nos EUA, Lecrae decidiu abandonar o rótulo gospel dos seus raps. Mas quando decidiu fazer isso publicamente, as igrejas que o apoiavam (a maioria freqüentada por brancos) cortaram os vínculos. A última gota d’água pingou em 2016 quando o rapper de Atlanta decidiu se posicionar e apoiar o Black Lives Matters. “Eu fiquei de luto pela perda de vidas negras desde 2014… sem consulta”, escreveu em carta aberta. “Luto contra críticos e votações desde 2012. Eu não consigo nem ler mais comentários sobre mim nas mídias sociais. Toda essa calúnia é demais para qualquer pessoa digerir”. (O mesmo aconteceu com o Pregador Luo no Brasil em 2020).
Seguindo as premissas de Lecrae, Andy Mineo, KB e toda a banca 116 Clique (e o selo Reach Records), os artistas brasileiros não querem ser colocados dentro de uma caixa. “É complicado porque o mercado coloca a gente num nicho”, ressalta Bruno Ramos. “Se você fala muito de Deus na sua letra, o pessoal vai te colocar na caixa do gospel”. Por outro lado, pelo mesmo motivo, os ouvintes do trap convencional não abraçou de vez as ideias baseadas na religiosidade, apesar das batidas siguirem a cadência, porque existe um lifestyle que (de certa forma) diverge com os princípios cristãos.
“Era como se o que a gente estava fazendo fosse algo brega”, revela Nesk. “Só que a gente estamos tentando trazer um conceito e a mesma qualidade de produção que eles. Então, aos poucos estão enxergando o nosso potencial. Vai chegar uma hora que vai ser que nem lá fora e não vai existir mais o trap gospel, vai ser só o trap. Tem quem fale dos seus princípios e tem quem fale sobre outras coisas”.
Assim como Nesk e Brunno, a MC Luna Garcez acredita que o rap gospel está vivendo o seu melhor momento e que, apesar das restrições – de não ter rap num culto de domingo, por exemplo -, as igrejas estão sempre com as portas abertas, da mesma forma que não falta espaço para as mulheres dentro do seguimento. “O que falta na minha opinião são mulheres com coragem pra ocupar um espaço que também as pertencem, e disponibilidade pra estudar, e colocar em prática um trabalho bem feito”. Já para Carolina Murback, tanto no secular quanto no gospel as oportunidades ainda são escassas. “Mas eu acredito que a gente tem que ficar batendo na porta até conseguir entrar, tipo no pop”.
Não muito diferente de 20 anos atrás, a vertente mais moderna do rap continua sendo aceita de forma restrita nas igrejas. A cartilha se manteve: é usado como evangelismo para quem está fora e entretenimento para os jovens de dentro. Porém, o trap gospel ainda não conseguiu sair do reduto evangélico. Furar (novamente) essa bolha é um objetivo de todos os envolvidos, mas não é algo que depende somente deles.
“Nosso intuito é sempre alcançar os de fora porque os de dentro já conhecem a palavra”, ressalta Murback. “Se a gente puder entrar nos grandes festivais, tenho certeza que a gente vai atingir o objetivo que é resgatar vidas”. Para Nesk, a união é essencial para que as barreiras sejam quebradas e todos saiam dos limites das igrejas. “A gente está formando um pilar pra uma coisa que vai ficar ainda maior nos próximos anos”.