Cidadão do mundo, Rafael Tudesco conhece bem as particularidades de algumas culturas, principalmente a estadunidense, que vivência intensamente desde 2006. Mesmo tendo oportunidades de trabalhar com medalhões da música urbana, como Lil Wayne, Rita Ora e Akon, o produtor ainda não se sentia acolhido, em casa. Isso mudou depois que ele começou a fazer conexões com uma rede de imigrantes, iguais a ele, que tinham raízes na América Latina e em países do Continente Africano.
Foi a partir dessa aproximação que ele vislumbrou a possibilidade de unir sons de diferentes lugares do (chamado) Terceiro Mundo, para criar algo que não se apropriasse apenas de traços estéticos, mas desse protagonismo aos responsáveis por desenvolver as células rítmicas dessas sonoridades – seguindo um caminho inverso do que é feito no mainstream.
“Como eu comecei a fazer muito trabalho em África, 10 anos atrás, via as tendências que estavam rolando lá e parecia muito com o que acontecia aqui no Brasil por causa dessa semelhança cultural. Então, foi muito uma coisa natural”, diz ele ao RAPresentando via Zoom. “Por ter passado por esses lugares eu sempre senti parte desse universo, independente se eu tivesse em África, na Europa com imigrantes ou no Caribe. Sempre senti essa ligação cultural”.
OFF
“Eu escuto o que me passa um pouco de verdade. Na época de hoje está cada vez mais difícil filtrar a sujeira, o barulho, a verdade”.
No projeto 3RDW (third-world), Tudesco pretende estreitar ainda mais a relação com os imigrantes que vivem no Brasil. O ponta-pé inicial foi dado com “Ahue”, que é interpretada por Big e Izzy (os Dois Africanos), Dani Yorubá e Ramonzin. O título – na linguagem Mina, usada no Togo – refere-se ao “lugar ao qual você pertence”. E para casar as ideias com esse direcionamento, o vídeo dirigido por Mailson Soares foi rodado no Capão Redondo, em São Paulo, com a participação de seus familiares e amigos.
Sem visitar o Brasil por alguns anos, o diretor foi escalado para fazer o registro de uma forma que soasse natural e que todos se sentissem em casa, mesmo não vivendo naquela quebrada, que reflete a realidade de todas as outras do Brasil. Faz um retrato da vida em comunidade, da camaradagem, e da alegria que se faz presente. “A gente quis fazer essa onda pra levar essa galera que a gente se sente bem para o nosso refúgio. O Mailson não vinha pra cá há alguns anos e quando pintou esse lance de fazer o clipe, já queria fazer na área dela com toda a nossa galera”, diz. “Foi muito importante ter essa conexão, essa energia e esse nosso ahue. Não foi uma coisa planejada. Só juntamos os brothers”.
Apesar de chegar aos ouvidos em 2021, a música começou a ser desenvolvida três anos antes durante uma residência artística no programa Red Bull Pulso. No time escolhido por Rafael estavam os quatro artistas, mais os produtores Du Brown e Dj Duh. A base rítmica tem cadência identitária da musicalidade africana. É um estilo livre com elementos de afrobeat, rumba e rap. Possui um certo experimentalismo, que reflete as características de cada um deles. E isso está presente em todo o conjunto.
“Quando a gente escolheu essa track pra poder fazer já estava uma coisa muito naturalizada. As ideias eram as mesmas”, observa Ramonzin. “A gente conseguiu fazer um trabalho com uma estética visual parecida com todo mundo que estava ali. A questão de você colocar toda a comunidade e movimentar toda a vizinhança pra poder fazer não é algo fácil se você não tem intimidade e a linguagem”.
Para Rafael Tudesco a essência de juntar cabeças pensantes, com a mesma visão, vai muito além de criar um produto. Este é apenas o resultado de um trabalho feito em conjunto. O mais importante é “a energia de troca e a evolução em conjunto”. E nessa primeira ação, ele mostra o poder da junção de personalidades diversas.
Os próximos episódios terão a mesma base. O plano é reunir todos os sons do 3RDW em um EP. Nada ainda está definido, mas já estão escalados MCs do Zimbábue, Congo e Haiti.”A gente ouve na música mundial as referências desses lugares em tudo. Nas músicas de Top 50 está lá os ritmos desses lugares. Só que a galera sempre dá uma temperadinha misturando mais pro lado do mainstream. Eu quero fazer o contrário, dar uma misturadinha puxando pro nosso lado. Chamar a nossa galera que faz acontecer e não está nos créditos. A intensão é inverter essa parada”.
O método usado pelo indicado ao Grammy Latino 2015, pela co-produção do álbum “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa”, do Emicida, foca na atemporalidade. Foge dos padrões descartáveis do mercado – que cada vez mais “preza” por hits adaptáveis aos challenges das redes sociais -, apostando no amadurecimento da arte. A maturação pode levar alguns meses ou anos, como aconteceu com “Ahue”.
“Esse tempo de reflexão que o Rafa tem com a música dele, e que eu também tenho, é tão importante porque faz com que as nossas músicas não sejam datadas”, reflete Ramonzin. “Eu não tenho tanta preocupação da minha música passar. Isso é uma coisa que eu não me preocupo. Então quando a gente coloca uma coisa na pista a gente tem certeza que as linhas, os timbres, as texturas vão bater durante muito tempo, independente de tendência”.
