No icônico Atelier Studios, no centro de São Paulo, Kamau e Slim Rimografia se encontram diariamente. Apesar de não compartilharem o mesmo espaço de trabalho, estão sempre se ajudando. Durante o isolamento causado da pandemia, os dois estreitaram ainda mais a conexão e começaram a estruturar o projeto SKIT, uma referência ao intervalo entre uma faixa e outra, que é usado para introduzir, preparar ou ligar duas músicas.
Depois de quase 1 ano de produção nasceu o EP “Isso”. Das 7 músicas, 6 são assinadas por eles, e uma é do Ryam Beatz. Para complementar as ideias foram convidados o DJ Gio Marx, a Lay (Tuyo) e o DJ KL Jay. Das letras aos instrumentais, passando pelas interpretações e uso de samples, o disco não segue padrões. A essência está nos experimentos e descobertas.
De uma das salas do estúdio que Slim e Kamau explicam via Zoom os detalhes do EP “Isso”, o primeiro do SKIT, arte, indústria da música e criatividade. “Não é dentro do quadradinho, pensando no mercado, pensando em aceitação. É tudo muito de esbarrar com coisas que tem a ver”, diz Slim. “O SKIT é essa simbologia da gente trampar junto e ser espontâneo. Ser intuitivo. Na maioria das coisas desse disco foi feita de forma intuitiva. Não tem um algoritmo indicando.
A parceria de vocês casou bem artisticamente…
Kamau: Não tô aguentando mais. Esse casamento já tá em crise. (Risadas)
Como aconteceu essa união?
Kamau: Como você viu na preparação para a entrevista, a gente trabalha no mesmo lugar, e estamos aqui desde 2019. Mas já somos amigos faz uma cota… vai pra mais de 20 anos. E sempre rolou essa ideia de trampar juntos, mas cada um respeitando o tempo do outro.
Slim: A gente já se contribuia em algumas coisas. Dez anos antes, ele já tinha feito uma participação no disco “Mais que Existir” (na música M.I.S.S.Ã.O). Acho que uns 15 a gente já tinha feito um som junto com o Pentágono, e tinha tentado fazer um trampo numa mixtape que eu fiz na época, mas aí acabou não rolando. Acho que é mais pela afinidade musical, e também pela amizade, de gostar de coisas parecidas, de ter uns amigos do skate em comum… de ter essa vivência, e a vivência do rap. O Kamau foi uma das minhas referências.
Kamau: Aqui (no Atelier Studios) é um lugar onde o Slim gravou o primeiro disco dele, onde eu gravei o meu primeiro disco solo (Non Ducor Duco), e na pandemia, como o estúdio fechou para o pessoal de fora, ficou só eu e ele aqui. Então, a gente estava aprendendo, fazendo coisas cada um para si, mas sempre contribuindo. Tipo, eu colo aqui e passo umas paradas pra ele. Aí escuto o que ele está fazendo. Ele vai na minha sala, a gente assiste um vídeo de skate, falamos sobre plugins. Não é uma vivência de um ficar pilhando o outro, pesando na do outro. É uma naturalidade ‘memo’ de vizinho… de vizinho que se dá bem, no caso, porque tem uns que tem problema. No nosso caso, o barulho é bom.
Slim: Talvez até isso é o que tenha feito a gente ir desacelerando, porque a gente já estava aqui e não tinha a necessidade de marcar as sessões. Então, quando começou a pandemia, a gente ficou nessa de como seriam as coisas, mas não como brecamos a criação (tipo assim: vamos continuar trampando). Aí falei: “mano, vamo aí. Você mixa, produz, eu produzo… a gente tem tudo pra gravar aqui e já dá pra gente ir fazendo essa parada, se precisar de uma galera a gente chama no vídeo, o cara grava lá e manda de volta. E essa foi a parada que fez a gente se manter mais focado. De se manter criativo, criando, e deixando fluir naturalmente. Às vezes a pessoa pode falar: “caralho, vocês ficaram quase um ano pra gravar 7 faixas”…
Kamau: … mas não era uma parada a toque de caixa.
Slim: A gente podia fazer uma faixa por dia, mas não é sobre isso. É sobre o entendimento de como tudo funciona. Talvez até por isso uma galera falou: “porra, tem tudo a ver”. Isso torna mais que um disco de duas pessoas rimando, uma no beat do outro. Vai além.
“Tem gente que fala que inovou só porque copiou primeiro. Mano, na moral, sem pretensão nenhuma, se eu e o Slim não inovássemos não tinha 80% do rap que tem hoje em dia no Brasil”.
Não fica aquela coisa descartável, de fazer para soltar e descobrir o que vai rolar. Qual vai ser a repercussão? Vocês trabalharam para criar algo sólido.
Slim: A gente é da época que tem um carinho maior por fazer som. Mesmo que hoje a gente tenha uma facilidade para fazer até dois sons por dia, o nosso lance é de apreciar. Na verdade, a gente ama muito o processo. Tem gente que só gosta do produto final. Já nós, somos pessoas que amam o processo, tá ligado!? “Making Off” fala muito isso. A gente estava ali curtindo, aproveitando o processo da parada. Não tinha pressa. Era tipo: “mano, vamos fazer, pensei nessa ideia, soma aqui, traz ali, dá uma risada, para um pouco, toma um café, troca uma ideia com o Beto (que é daqui do estúdio também), volta”… É uma parada de amar o processo mesmo. Às vezes isso se torna até um problema, porque você gosta tanto do processo que não lança nada…
Kamau: Porque a gente tem um pouco disso no trabalho solo. Você vai fazendo, fazendo, e aí faz, vai pra outro, pra outro e não finaliza. Nesse caso nosso, a gente falou: “temos que concluir isso aí”. Mas fora essa facilidade de fazer duas músicas no dia, a gente também pode subir rapidamente numa plataforma qualquer. A gente veio de uma época que tinha que juntar dinheiro pra prensar o disco, esperar a master ir pra Manaus (no polo industrial onde os CDs eram produzidos), voltar e falar que está errada, e ainda dar vários problemas até o disco sair. Então, aprendemos a ter paciência em algumas coisas. Hoje a gente usa essa paciência pra fazer música. Antes era pressa, prazo e esperar… e agora a gente tem paciência. É lógico que tem os prazos e datas, mas conseguimos conciliar melhor esse tempo, tá ligado!?
Slim: No passado tinha muito essa parada de pegar na mão. Isso era muito foda. Pegar o CD na mão pela primeira vez.
Kamau: Isso ainda é demais.
Slim: É um contato diferente com a arte que, de certo modo, meio que vem se perdendo. Hoje tá tudo jogado na nuvem. Tá tudo num outro rolê e você não tem aquela parada física, tá ligado!?
Kamau: A gente esperava o videoclipe passar na TV, e ficava na expectativa do programa que ia no ar no dia certo. Pegar a fita, escrever o nome, gravar a fita (e o vídeo não cabe na fita)… um monte de coisa. Era um contato físico diferente com a música. Agora, a gente não tem mais essa busca, porque está tudo muito fácil. Então, quando vem muito fácil as pessoas vão deixando pra depois. Aí, se perde no bagulho, pega o mesmo caminho sempre e não tem esse contato da hora.
E com esse novo estilo de mercado também pede algo que seja mais urgente. Você acabou de lançar o disco e um dia depois já te perguntam quando vai sair o próximo.
Kamau: Tem uma parada que rolou na madrugada (do lançamento). O Slim foi dormir, porque ele dorme mais cedo, e eu fiquei trocando uma ideia com as pessoas… aí, durante a audição (no Spaces do Twitter) o cara nem tinha acabado de ouvir o disco e já disse assim: “To gostando do estilo, já quero saber: tem alguma música com o Zudzilla?” Ele nem tinha acabado de ouvir o disco. Tipo assim… é um bagulho de refeição que a mãe fala: “você só vai comer a sobremesa depois da comida, vai ter que comer tudo, mastiga tantas vezes, o refrigerante é só depois.” As pessoas não estão mastigando, mano.
Slim: Consomem a arte de um jeito muito louco. O cara fala: “estou ouvindo o seu disco! Mas não, na verdade ele está olhando na internet e interagindo com um monte de coisa. Você não está sentindo qual é a parada. Sei que é difícil, mas você não está criando um ritual pra ouvir aquele disco. Tem gente que ainda fala: “caralho, mano, já baixei aqui, e amanhã quando eu estiver indo pro trampo boto no fone. Vou dar uma caminhada, vou colocar o disco e ouvir”. A relação dessas pessoas com a arte se torna outra coisa, tá ligado!? Já pra outra galera é como colocar um monte de obra de arte na galeria, o cara passar de carro e falar que viu a exposição toda. É nessa velocidade que as coisas estão acontecendo.
Kamau: Existe uma diferença entre você entrar numa sala de exposição e rolar na timeline. O cara que vê na tela diz: “caramba, ficou louco hein!?” Aí, dá um like e já era.
A pessoa nem pegou a mensagem. Achou a sonoridade boa, mas não observou o conceito, porque tem toda uma estrutura que não se limita à letra nem ao instrumental.
Kamau: O conceito ainda leva um tempo, mas o pior é que a pessoa já quer um bagulho do jeito dela antes de ver o que realmente veio. Ela pediu uma feijoada, foi entregue e ela já pergunta: “mas tem bolo de chocolate?” Não! Cada um no seu cada um, senão vai te dar um gás diferente. Mas tem que esperar pra saber o que tem ali, né!? Sei lá. A gente tem essa outra relação com a música que até parece ser papo de velho, e a gente entende muito o que os antigos falavam pra nós, mas é que a diferença da relação deles pra nós e da nossa para os próximos é diferente também, porque aprendemos muito com quem veio antes. E quem tá agora, tá aprendendo com um robô, tá ligado!? Com o algoritmo, com a internet, com o caminho que o Waze fala que é o melhor. A gente aprendeu o caminho andando.
A relação com a arte tem sido mais de consumo do que apreciação. Você pega o disco na mão, vê a capa, a ficha técnica, quem tá quem não tá… mas agora o cara dá o play, o disco vai rolando, e a própria plataforma te joga outro disco. Você acabou de ouvir, e já entra outro som que você acha que faz parte do disco que colocou para tocar.
Slim: E na real, a arte foi feita meio que pra você se desligar e dar uma refletida de outras coisas, mas a forma que a gente consome hoje é uma parada muito cabulosa, porque você tá consumindo uma parada que te proporciona um milhão de coisas. Antes não, a galera tinha um lance de comprar um vinil, chegar em casa, parar tudo, sentar, colocar pra tocar aquilo que comprou.
Kamau: A fita “memo” que uma pessoa gravava pra você… virar o outro lado da fita e voltar toda ela na caneta, e catar pilha no mercado, que eu não vou mentir que ninguém daqui nunca pegou pra colocar no walkman… (risadas)
Slim: Hoje a galera consome muito mais arte em todos os aspectos, desde se vestir a assistir filmes, mas de uma forma muito superficial de ver tudo ao mesmo tempo. O cara tá lendo um livro, assistindo um filme, ouvindo música e fazendo um rango. Caralho, velho! Não dá. Às vezes eu até me pego nisso. Eu falo: “vou botar um som. Deixa eu parar tudo, sentar no sofá e prestar atenção nesse som”. Sempre quando é disco, eu gosto de ouvir quando estou dirigindo ou correndo. Eu tenho uma relação com a música, também porque eu trabalho com ela o dia inteiro, então não dá para brecar.
Kamau: E olha que tem gente que trampa com música o dia inteiro que em casa não quer ouvir música não. Tem gente que trabalha em loja de discos que não tem disco em casa. A gente ainda tem esse amor pela música.
Slim: Mas tá aí, né!? Para aqueles que gostam de realmente degustar a parada, mastigar… vai encontrar muitos sabores diferentes entre os sons.
Kamau: Feche os olhos e perceba as nuances.
Fechar o disco em 7 músicas já era uma decisão antecipada ou vocês foram produzindo e depois veio aquele processo de corte daquelas que não estavam conectadas?
Kamau: A ideia era um número ímpar, ou 5 ou 7, porque a gente queria equilibrar bem com produções minhas, produções dele e mais uma pessoa de fora, que foi o que aconteceu.
E as produções vieram antes das composições, ou vice-versa?
Kamau: Primeiro veio a ideia de fazer, mas a gente não sabia qual seria o tema. O primeiro beat que chegou foi do Slim. No mesmo dia que recebi o beat já escrevi uma boa parte de uma letra, que é a “Nota de Escurecimento”. Aí, pegamos uma ideia que eu tinha de beat de uma outra parada, e o Slim curtiu. Então, fizemos “Fôlego”, e fomos fazendo, tá ligado!? A única coisa que a gente não fez especificamente para o EP, mas era um rascunho, foi o beat da 6, que eu já tinha sem as baterias. O resto a gente fez especificamente pra isso durante o processo.
Slim: Tirando o da 6 todas as produções foram feitas para o EP.
Kamau: E o da 6, eu já tinha a ideia, mas mudei depois.
Slim: A maioria foi feita em cima de uma batida. Às vezes a gente tinha uma ideia na cabeça, mas ela tomava forma mesmo depois que a gente tinha um beat. Aí, aquele fragmento de ideia virava letra.
Pelo jeito tudo fluiu naturalmente, mas teve alguma dificuldade de conectar o estilo do Kamau com o do Slim?
Kamau: A parada da gente se conhecer há um tempo facilita isso, porque a gente não tem que juntar uma parada minha e tentar encaixar o que ele tem. A gente tem algumas coisas em comum, e um admira o trabalho do outro, que não é uma coisa que a gente tem naturalmente. Então, tem coisa que o Slim faz que eu naturalmente sozinho não faria. Por exemplo, uma parada que eu zoei muito no processo… falava: “caramba, toda hora você quer fazer uma ponte!” Ele respondia: “não, vai ficar da hora”. E ficava da hora. Aí eu trazia um refrão, um dizia que dava pra fazer a voz de um jeito e mixar de outro jeito, tocar de uma forma específica. Então, a gente foi no comum, mas trouxe algumas coisas de cada um também.
Slim: Na verdade, eu tenho umas brisas. Gosto de fazer muitas experimentações. Sempre estou fazendo algumas coisas diferentes, mas gosto dessa onda que a gente fez. Eu sei que tem algumas coisas que eu briso, e sabia que não tinha muito a ver com o Kamau. A gente trazia coisas que conversavam com os dois..
Kamau: Mas também teve, tipo assim: “mano, eu acho que se o Kamau tentar um bagulho assim vai ficar da hora”. Não era necessariamente trazer só aquilo que eu estava acostumado.
Slim: Mas não tão fora do que você está fazendo… é uma mescla. Mesmo dentro das produções do Kamau tem alguma coisa minha, dentro das minhas produções tem alguma coisa a ver com o Kamau. Não era uma parada completamente fechada, tipo: “isso aqui tá assim, e tem que ser assim”. Acho que na arte é isso, as coisas vão se comunicando e também vai da sensibilidade do artista. Eu gosto de criar ponte, derrubar, tirar as coisas, de voltar, de criar umas paradas no meio que parece que não tem nada a ver, quebra e depois volta…
Kamau: Eu também gosto de alguns detalhes, que parece que ninguém vai ligar, mas na hora que entender vai ser da hora. E a gente também não teve um processo fechado. Tinha hora que eu estava fazendo a batida, e no meio da criação (para saber se eu continuava com a ideia) perguntava pra ele: “o que você acha disso?” Com ele era a mesma coisa. Como nas produções que o Slim fez tem muita coisa tocada, eu perguntava: “e se você tocar aqui e for pra cá?” No meio do processo a gente foi dando algumas ideias.
Um complementando o outro, e dando aquela incentivada, né!?
Kamau: Incentivada é a palavra chave. Se não fosse o incentivo, do beat dele não ia me instigar a escrever, principalmente porque a gente começou a fazer o disco efetivamente num 20 de novembro, já é uma coisa de um provocar o outro. Eu ouvi uma letra dele, e falei: “mano preciso escrever tão bem quanto”. E aí, ele ouviu uma minha e foi a mesma parada. Conhecendo ele, eu não poderia chegar com qualquer coisa.
Slim: Não é nem sobre a superação do outro. É de chegar numa expectativa sua de entregar o melhor.
Kamau: São duas pilhas fortes, porque se fosse uma pilha e um arame ia dar ruim. Tinha que ser as duas pilhas no máximo.
Mesmo sabendo que a música rap está seguindo por um caminho e geral ta seguindo por ele, vocês mantém a essência com uma sonoridade dos anos de 1990.
Kamau: Eu não concordo quando falam que é tipo anos 90, porque se você comparar o que a gente já fez de 2000 pra cá com o que a gente fez agora, não tem a ver, tá ligado!? Na real, tem a ver mas não é aquilo. Agora pouco eu vi um cara falando assim num post: “eu amo o que o Kamau faz. Os projetos dele são os meus favoritos, mas eu gostaria tanto que ele inovasse…”
Slim: Mas depende do que o outro entende por inovação.
Kamau: A gente sempre trouxe inovação, mano.
Slim: Eu tenho uns projetos muito fora do que eu já fiz, que tem até gente que nem gosta. Tem o Mr. Dinamite que não tem nada a ver com o que eu já fiz. É outro esquema de rimar, outra forma de beat… desde o SinGO tem umas paradas que é trap, mas não é trap. É uma mistura de grime, que também não é grime. Sempre tive essa visão como produtor. De entender a essência e descaracterizar algumas coisas, tá ligado!? Tem gente falando que está fazendo rap dos anos 90… você não tá, mano! Você não tá nos anos 90! Você vai ter que voltar vários anos. Você está sendo inspirado, e fazendo uma outra coisa, porque, tipo assim: o recurso que eu tenho aqui é completamente diferente do recurso dos anos 90.
Kamau: Não tem como fazer rap anos 90 no celular, por exemplo.
Slim: Então, pra você falar que tá fazendo um rap anos 90, precisa analisar o seu setup. Não pode passar nada daquilo que os caras tinham na mão pra fazer. Você não vai olhar na internet pra pegar uma referência… vai pegar outro caminho. É a mesma coisa do cara gravar num iPhone com uma puta câmera, colocar um efeito VHS e dizer que fez um trampo em VHS. Quando você pegar uma câmera VHS na mão e tentar fazer, você vai ver que é outro rolê.
Kamau: A gente que está no estúdio direto vê isso com plugin, por exemplo. Tem emulador de tudo quanto é coisa. Aí, a gente pega a máquina (MPC) e não fica bom. Mas o que você está tentando imitar essa máquina e ela não está boa? É tipo leite em pó e o leite da vaca.
Slim: Às vezes o cara bate no peito e diz que está fazendo o rolê, mas nem eu peguei essa fase. O que a gente fica fazendo é emular uma parada… eu gosto da textura de uma sonoridade dos anos 90, e aqui eu tento jogar um pouco disso. E você vai falar: “Ah, entendi!” Mas não dá pra falar que a gente tá preso numa determinada época. A gente já está usufruindo de outra tecnologia. Tipo, esse disco nem tem como ser anos 90. Tem sintetizador pra caralho no disco. Tem umas coisas que se conversam com outras paradas. É outro rolê. E é o que a gente estava falando, o cara não presta atenção no trampo. Ele ouviu uma parada que remete a assinatura do Kamau, ele já coloca numa caixa. Mas, ele não parou para ouvir de fato. A assinatura é um bagulho peculiar de cada um, independente do que vai fazer. O traço do cara tá ali. É uma característica dele.
Kamau: É aquela parada do novo não sei quem. É o novo alguém que já existe, tá ligado!? E a pessoa não pode ser ela mesma. Não pode ser uma coisa inédita. É um upgrade, um update, uma reprise do que já passou. É tipo remasterizar (o filme) A Lagoa Azul, tá ligado!?
E quando você inova, a galera não gosta dessa inovação.
Slim: Não entendem.
Kamau: o que eu sempre falo é: “você já viu o Superman com a roupa do Homem de Ferro? O Superman poderia usar uma roupa de outra cor agora, porque não tá legal essa”. Aí, ele muda e começam a comentar:” iihh, colocou o bagulho vermelho… o vermelho a gente sabe o que significa”. E é basicamente isso: o Superman não precisa da roupa do Homem de Ferro.
Slim: E tem aqueles que falam isso, mas não tá nem atento ao barulho de inovar, tá ligado!? Não sabe o que é inovação dentro da música. E quando você faz algo que não conversa com um monte de coisa que o cara tá acostumado a ouvir, se o cara pensar, às vezes isso pode se tornar um problema. O que você tem pra inventar sobre música hoje? Criar… tipo, o cara toca um piano e diz: “Porra, fiz uma combinação de acorde aqui que ninguém nunca fez”. Como ninguém nunca fez, mano? Talvez você não saiba quem fez, mas é quase que impossível.
Kamau: Mano, se você não fez um acorde com um estilingue e um teco de bambu, você não inovou nada.
Slim: Todo som depende de alguma influência, de outras paradas. Às vezes ficam buscando algumas coisas impossíveis de acontecer.
Kamau: Tem gente que fala que inovou só porque copiou primeiro. Mano, na moral, sem pretensão nenhuma, se eu e o Slim não inovássemos não tinha 80% do rap que tem hoje em dia no Brasil.
E como os artistas convidados se encaixaram nesse contexto?
Kamau: Foi igual procurar timbre, plugin. Um exemplo: a gente sempre usa a mesma máquina para produzir. Nesse caso, a máquina foi o DJ. Essa a gente sabe que funciona bem pra nós, que é o DJ Gio Marx (que está em quatro músicas). Aí, a gente tá usando aquela máquina e buscando alguém pra completar. Pensamos: “quem completa bem aqui?” O KL Jay! Ele veio pra fazer a fala, mas achamos legal também ele fazer alguma coisa no final. Aí, ele fez o scratch.
Slim: A parada do Kleber não é só ser DJ, mas o fato de tudo que ele representa, principalmente na temática negra, da postura. Aquele som pra mim tem uma sonoridade de chamar pra uma guerra, preparando todo mundo, saca!? Falei: “mano, a gente precisa ter alguém que fale no começo como um líder”. Quem seria? O DJ KL Jay é um líder que continua inspirando muita gente.
Kamau: E não é um líder dando ordem.
Slim: É um líder motivador. Então, quando ele grava aquela parte… podia ser eu ou o Kamau falando aquilo, mas não é isso, é a representação dele. A figura dele falando isso é outra coisa, porque de certo modo, ele foi o cara que motivou o Kamau, me motivou desde quando fiz meu primeiro CD. Ele pediu meu telefone, falou que ia ouvir meu disco e me ligar dizendo o que achou.
Kamau: Ele viu rap em mim, antes de eu saber. Olhou pra mim e disse: “porque que você não rima?” A primeira pergunta do “Non Ducor Duco” é por isso! A minha vida no rap começou nessa pergunta feita pelo KL Jay.
Slim: O Kleber também fala muito através dos toca-discos. Não é só um risco. Ele conversa, ele passa uma mensagem… é como se fosse outro verso. Até a gente ficou falando: “caralho, o bagulho conversa, é foda”. É um outro significado pra tudo o que a gente falou.
Kamau: E não é técnica de scratch, de música que mais bateu, é a sensibilidade de juntar várias coisas com aquilo que a gente está falando antes. E quando a gente agradeceu pelo o que enviou, ele disse: “”é o Kamau e o Slim, né mano, não dá pra mandar qualquer coisa. O KL Jay falou isso pra nós, tá ligado!?
Slim: As participações não são por causa de visibilidade ou números. É um complemento do que a gente precisa no som.
Kamau: A Lay também é uma voz que a gente começou a pensar na música. O Slim conhecia o trabalho dela um pouco menos. Pedi pra ele escutar a voz dela sozinha. Muitas vezes a gente escuta ela na Tuyo junto com a voz da Lio e do Machado, e fazendo aquele balanço. Mas quando a gente isola (como fosse um elemento, como a gente faz para samplear), a gente identifica como se encaixa com os outros elementos. Foi o que a gente fez. A voz dela encaixou perfeitamente. E quando veio a gente disse: “era isso que eu precisava e não sabia”.
É o lance de saber de fato quem vai somar, não ficar caçando e jogando pra todo mundo.
Slim: Você manda e o cara não tem dúvida. E aí o disco vem. Todo mundo que a gente trampou foi assim. Foi uma parada de não levar algo completamente fechado, de sugerir e ter um retorno muito foda. Desde a arte da capa, da foto da capa, desde os elementos da fotografia, e como tudo foi criado. Tem uma leveza artística, porque fechamos com quem tem uma sensibilidade de arte muito foda.
Kamau: E que tem uma convivência com a gente para entender o que a gente pensa já de uma cota.
Slim: Aí, não tem como dar ruim.
A gente observa que a música segue o caminho do que está em alta no mercado. E o rap não fica atrás. Isso tem feito com que tudo fique muito igual. São várias cópias da cópia…
Slim: Outro dia estava vendo uma parada, e um cara que toca batera mostrou um vídeo com as 20 músicas mais estouradas de pop, de trap… é tudo a mesma bateria, um pouco mais rápido, um pouco mais lento, mas tudo a mesma. A gente está vivendo uma era também de produção, principalmente dentro do rap, que as pessoas pegam umas coisas meio montadas e criam um quebra-cabeça, só que aquilo tudo tem a mesma sonoridade. Quando você pesquisa de vinil é foda, porque às vezes eu pegava coisa que não tinha nada a ver com sonoridade de rap. Não era pensada pra isso, mas a gente virava de cabeça pra baixo, cortava, puxava e criava outro som.
Kamau: Por exemplo, o sample que a gente usou na primeira faixa foi o mesmo pedaço que também usamos na última… segundos. A interpretação do Slim foi diferente da minha, tá ligado!? A minha é o que ele rima, e a dele é a que eu rimo. É o mesmo pedaço, mas são duas coisas diferentes.
Esse é o resultado do processo de criação. De pegar aquela tela em branco e criar a sua arte ali…
Slim: E isso é uma parada que marca, porque quando eu fiz o beat que mandei para o Kamau tem uma simbologia porque eu lembro do momento. Eu não estava ouvindo outra coisa e tentei fazer igual. Passei aqui, ouvi uma guitarra e falei: “caralho, mano!” Sei lá, levei 5 minutos para criar o conceito de um beat, mas chegar nesses cinco minutos é outro rolê. É outra coisa.
Kamau: A fôlego “memo”… a inspiração da música veio porque eu sampleei uma parte que tinha o respiro do cantor, tá ligado!? Era um piano e o respiro do cantor.
Slim: Essas marcas fazem muita diferença pra mim. Tem música que eu falo: “caralho, eu lembro exatamente o dia que eu fiz, a situação”. Pensei num verso, eu lembro exatamente o porque eu cheguei nisso. Aí, volta naquilo: a gente ama muito o processo. Por isso a gente ri pra caralho, porque é um processo criativo divertido. É umas loucuras que ficou da hora. Até quando teve que mandar as letras (para a distribuidora), o Kamau falou assim: “caralho, tem um monte de bagulho aqui que precisa arrumar”.
Kamau: Porque ele escreveu de um jeito e gravou de outro.
Slim: Pra gente, o mais legal de tudo é esse caminho. A gente tem história pra caralho… Fizemos um disco juntos e temos história de tudo que a gente criou em parceria. Daqui 10 anos a gente vai lembrar desse momento. É tudo muito trabalhado através da criatividade, tá ligado!? Não é dentro do quadradinho, pensando no mercado, pensando em aceitação. É tudo muito de esbarrar com coisas que tem a ver. O SKIT é essa simbologia da gente trampar junto e ser espontâneo. Ser intuitivo. Na maioria das coisas desse disco foi feita de forma intuitiva. Não tem um algoritmo indicando.
Kamau: Agora eu já pensei um novo significado pra SKIT: Skill (habilidade, em inglês) intuição e trampo. É o que a gente fez. Esse é o título da matéria, pode anotar aí (risadas).