A América do Sul teve grande influência na construção do terceiro álbum da Jupiter & Okwess, “Na Kozonga”. Para a produção, Jupiter Bokondji, Montana Kinunu, Yende Balamba, Eric Malu-Malu-Muginda, Richard Kabanga Kasonga e Blaise Sewika Boyite convidaram o aclamado Mário Caldato Jr. A escalação dele pode ter sido primordial para a participação dos também brasileiros Marcelo D2 e Rogê. Junto com eles, também estão a cantora chilena Ana Tijoux, o ator e músico francês Yarol Poupaud, a cantora e compositora estadunidense Maiya Sykes, e a histórica Preservation Hall Jazz Band – uma das tradicionais Big bands de Nova Orleans. Até o lugar do registro foi escolhido especificamente pela ligação com a latinidade: Los Angeles. Apesar de curiosa, a conexão tem um objetivo muito bem desenhado.
Como aconteceu com diversos países africanos, o continente Sul Americano também foi colonizado e roubado por Europeus. Esse fato cria um ponto de ligação entre eles. A junção de diferentes culturas gerou algo único. E as experiências musicais remetem à África. Os assuntos tratados levantam questões não tão palatáveis quanto o instrumental cadenciado. O que é compartilhado pode até ser considerado sombrio, mas verdades precisam ser ditas, ainda mais agora. É nessa abordagem em que as realidades dos colonizados se encontram. Mesmo distantes, estão bem próximas. Tiveram os mesmo algozes e, por isso, ainda sofrem pelos problemas causados – uns mais, outros menos.
“Não há como esquecer o passado tão facilmente. As pessoas do outro lado são nossos descendentes distantes”, diz Jupiter. “Abordar temas relacionados aos problemas da sociedade, como a colonização, problemas climáticos e ambientais, injustiças sociais com ritmos emocionantes, nos permite curar nossas almas nos libertando de todos males”.
Essas ideias estão bem fundamentadas em “You Sold Me A Dream”. Dentro de uma espécie de guitarrada extremamente dançante, Ana Tijoux e Jupiter falam, em espanhol e lingala (idioma da República do Congo) respectivamente, da sobrevivência de diversos povos depois dos impactos dos processos de colonização. É energética e essencial. Na mesma linha, “Mieux que ça” mantém a chama bem acesa. No carnaval, ela facilmente estaria presente no repertório do Navio Pirata, do Baiana System. Tem o suingue e todos os ingredientes apimentados da musica preta brasileira. Menos explosiva que esta, “Jim Kata” mergulha fundo no ska. Inevitavelmente o termômetro não permanece sempre acima dos 38 graus. No decorrer dos 45 minutos e 25 segundos, ele vai caindo, esfriando. Obviamente, isso não significa a perda de qualidade. Apenas mostra que a proposta vai além de meter dança. Há um certo equilíbrio. Tem o clímax e os momentos reflexivos, tipo em “Bakunda Ulu”, que presa por destacar os vocais, tipo um coral gospel, e guitarras folk de Touareg.
Toda essa diversidade dá pluralidade à estrutura musical, alicerçada no afrobeat, e muito bem rejuntada com a união explosiva de jazz, salsa, funk, cumbia congolesa e uma espécie de rock rural local (bofenia rock). Assim, como o significado de Na Kozonga (“voltar pra casa”), a Jupiter & Okwess retorna para lembrar as feridas do passado, tendo como objetivo curar o futuro – através de uma música ancestral. É o “retomar da profundidade infinita da alma”, como diz o próprio Bokondji. Faz o corpo mexer, a cabeça pensar e ajuda no processo de cicatrização das feridas do coração.
Foto: Youri Lenquette