Assim que o sol nasce, alguns moradores do Quilombo da Liberdade, em São Luís do Maranhão, colocam suas radiolas na porta de casa para fazer o reggae ecoar. Cada um tem a sua seleção. Porém, o que se ouve pelas ruas foge do convencional. Ao longo do caminho, os vizinhos, pedestres e turistas podem ser impactados por versões reggaeras de sucessos de Lady Gaga, Lana Del Rey, Beyoncè, Michael Jackson. Não por acaso, o maior quilombo urbano das Américas é considerado o berço do reggae do Maranhão.
Foi nesse ambiente, influenciado pelas experiências musicais da Jamaica, que Enme foi criada. Assim, enveredar pela música se tornou algo inevitável. “Pra você ter noção, a minha casa, o quintal, é de fundo com o barracão do Boi da Floresta, que é uma das grandes manifestações culturais do Maranhão”, observa ela. “Então, imagina: era bloco afro, tambor de crioula, Bumba Meu Boi e reggae na porta todo dia. Essa foi a minha formação”.
Mesmo com todas essas referências locais, a cantora e compositora trans não-binária iniciou sua jornada no rap. As primeiras imersões começaram em 2014 na produção de eventos de hip hop. Mas logo viu a necessidade de sair dos bastidores e subir no palco. Depois que subiu, nunca mais quis descer. “Eu já vinha dentro dessa cadeia produtiva do hip hop em São Luís, dentro da música no geral, e sempre bebendo de referências da música popular”, diz. “E isso acabou me colocando num lugar de trazer essa massa comigo enquanto evento e depois com a arte”. Premiada com a música “Juçara” no festival Sons das Ruas, ela estreou com o primeiro EP “Pandú” em 2019.
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“O RAP É O ÚNICO ESTILO QUE PERMITE QUE A GENTE PASSE A NOSSA MENSAGEM. EU SOU UMA ARTISTA QUE TENHO MUITO A DIZER. ENTÃO, EU ENCONTREI NO RAP UMA OPORTUNIDADE, UMA PORTA, UMA JANELA, UM GRANDE PALCO ABERTO PAEA QUE EU COLOCASSE TUDO ISSO NAS RIMAS”.
Dois anos depois, Enme optou por uma sonoridade mais pop a qual inseriu no álbum “ATABAKE”, sem abandonar a essência da cultura maranhense. Agora, em 2024, ela maximiza suas referências afro-diaspóricas com uma versão deluxe produzida por Faustino Beats (BA), DJ S4TAN (SP), DJ Eva de Lc (MA), e com participações inéditas de Baobá (SP) e Gravnave (BA).
“Quando fizemos ATABAKE, a gente fez a versão original e deixou o deluxe pronto, só que eu esperei o momento certo pra lançar o deluxe. Mas foi um processo enriquecedor pra mim enquanto artista, porque me colocou desafios na voz, me colocou desafios tanto de musicalidade quanto de técnica vocal, de pensar a composição de um jeito genuíno, sem ter influência de outra pessoa, porque a gente gosta de repetir o flow dos outros. Então, tentamos olhar pra uma coisa mais original e que marcasse o tempo”.
Enme observa também que ambos os discos marcam a cultura do Maranhão, porque mantém o tambor de crioula nas músicas, tem quebra, que bebe da fonte do pagodão baiano e compartilha a vivência local, como faz em “Som da Liberdade”. “Tudo isso me fez ter um entendimento do que é um tambor, a métrica do tambor, o que é o aparelho do tambor, qual a métrica do atabaque, que lá no Maranhão a gente de abatar”. Na pesquisa musical para a produção, ela se aprofundou nas cadências percussivas e teve a oportunidade de conversar com os mestres de cultura do Maranhão para se inspirar e contar histórias que não falassem só dela. “Eu tenho muito medo de ser um rosto único, quero ser a porta de entrada para que descubram a musicalidade do Maranhão”.
É por isso que Enme tem como sua diva a cantora de reggae maranhense Célia Sampaio. A admiração começou ainda na infância quando fez parte de um bloco afro comandado por Célia. Outras figuras que deram impulso para ela começar a cantar em 2017 foram Rico Dalasam e Karol Conka. “Esses foram os nomes que me encorajavam”, revela. “Eu pensava: poxa, se essas pessoas estão fazendo rap, se estão fazendo música, eu também posso fazer. O Rincon Sapiência é outro mestre da música que hoje está mais próximo do que eu faço”. Nessa lista também entram Gloria Groove, Beyoncè, o Boi da Floresta e o Centro de Cultura Negra do Maranhão.
Seguindo a onda da versão Deluxe, que tem tomado a indústria musical, Enme observa que quase todo mundo que lançou disco no período pós-pandêmico (como é o seu caso) se sentiu numa conversa inacabada. Por isso, decidiu abraçar a estratégia para apresentar “ATABAKE” aos que ainda não o conheciam. “Tanto o original quanto a deluxe me trazem um amadurecimento musical muito grande, porque é a primeira vez que me vi produzindo dentro de uma imersão”, ressalta. “É um assunto que não terminei de contar, e uma conversa que eu quero continuar. Por ser pós-pandemia, o deluxe permite trazer essa conversa à tona novamente e mostra o meu amadurecimento de 2021 para 2024”. Nesse intervalo de tempo, ela desenvolveu uma musicalidade que une a bagagem que já tinha com o que adquiriu nesse período.
“Tem versões no álbum que são um pontapé do que eu vou fazer. E agora, nesse processo eu tive a oportunidade de mergulhar em comunidades que são novas pra mim, como a comunidade Balroom, por exemplo. Foi um processo enriquecedor pra mim enquanto artista, porque me colocou desafios na voz, me colocou desafios tanto de musicalidade quanto de técnica vocal, de pensar a composição de um jeito genuíno, sem ter influência de outra pessoa, porque a gente gosta de repetir flow dos outros. Então, tentamos olhar pra uma coisa mais original e que marcasse o tempo”.
Vislumbando o futuro, a meta dela é ficar rica esse ano. “Cansei de lutar, quero lucrar”. Mas para além do desejo de ter a conta bancária abarrotada de dinheiro, Enme quer ultrapassar as fronteiras e se conectar com o mundo. “Eu quero que as pessoas entendam que a artista local, regional e segmentada do nordeste não cabe mais no meu trabalho”, afirma. “Ele tem uma expansão e uma pesquisa mundial. Depois que a gente atravessa o oceano é muito mais fácil atravessar as barreiras e os preconceitos que as pessoas criam no Brasil”.