Desde quando o Cabal decidiu se retirar do rap, sempre tive a curiosidade de entender os reais motivos dele ter abandonado a carreira. Esse momento chegou depois de comentar o texto de imprensa sobre o EP “POP”, do Cabal e Terra Preta, que colocava os MCs como os responsáveis pela popularização do rap no Brasil. Obviamente, o direcionamento era outro – estava relacionado ao mercado da música pop -, mas houve um ruído no meio do caminho que impediu que a mensagem fosse entregue da maneira que deveria ser. Acontece.
Depois de uma conversa com a jornalista (minha amiga) responsável pela assessoria, recebi o convite formal para conversar com os dois artistas. A pauta principal seria o projeto, mas ambos estavam dispostos a falar sinceramente sobre vários momentos da carreira deles, e revelar questões (talvez) não reveladas. Via Zoom encontrei com Terra Preta, no seu estúdio, e Cabal, no transito, para conversarmos durante uma hora sobre essa parceria iniciada durante um período que ambos estavam passando por problemas relacionados à saúde mental. Mas as almas se conectaram, e eles se ajudaram.
Antes de ler a entrevista, veja com exclusividade o videoclipe da música “POP”, dirigido e produzido pelo próprio Cabal. “Ela já estava selecionada… e eu fico gravando prévias. De 2017 pra cá, eu devo ter gravado umas 2500 prévias”, diz Terra Preta. “Então, eu tenho várias músicas, e essa era uma das que já tínhamos uma ideia principal, que no Hip Hop a gente chama de reference track – um flow já elaborado e um refrão. Como a gente tinha diversas músicas, escolhemos essa por ter um refrão legal… porque às vezes é legal trabalhar com uma cartela ampla de músicas. É como se você estivesse numa montanha de carvão, acha um diamante e começa a lapidar”.
Já faz um tempo que vocês estão fazendo parcerias em singles, mas agora chegam com algo um pouco mais sólido. Por que decidiram fazer um EP, e por que intitulá-lo de POP?
TERRA PRETA: A gente vem se encontrando desde 2019. O Cabal estava com a PROHIPHOP gerenciando a carreira de alguns artistas e entrou em contato comigo pra falar de um post que eu tinha feito anos atrás perguntando: ‘cadê o Cabal?’. Depois de um tempo ele deu um salve no Instagram. Aí, fui na casa dele e depois fomos no estúdio com o pessoal da gravadora. A partir daí começamos a fazer colaborações… a gente já tinha se trombado antes dele parar com a música, mas nunca paramos pra trocar ideia. Na sequência, começamos a gravar juntos. Fizemos “Armas de Ogum” e “Mete Marcha”. Mas mesmo trampando nessas músicas não tínhamos pensado em fazer um trabalho completo juntos, era só uma coisa esporádica…
CABAL: Só abrindo um parêntese… ao mesmo tempo que a gente não tinha essa intensão de trampar juntos, desde a primeira vez que fomos para o estúdio percebemos como éramos parecidos: pensávamos parecido, a gente tinha um processo de composição parecido… e lembro do Terra falando: “caralho, mano, a gente tá aqui há uma hora e já fizemos uma música foda”. E a gente veio daquela experiência de ficar horas com outros artistas pra fazer uma música. Foi aí que sentimos que tinha uma liga.
TERRA PRETA: Exatamente. E foi a partir dessa percepção que mais tarde nos aproximamos mais…
CABAL: … o momento chave foi ano passado (2021), que eu estava deprimido, na merda, por estar muito inseguro como artista. Então, pensei: já que não estou conseguindo ser artista, vou tentar ser empresário. E aí, também não deu certo por N motivos. Foi nesse momento que cheguei no Terra e falei pra ele tudo o que eu estava passando.
E como foi compartilhar esse momento com alguém que nem era tão próximo assim?
CABAL: Pouca gente sabe, mas além de ser um grande cantor, um grande rapper, um grande artista, ele também é meio que um bruxo, com umas paradas de conhecimento exotéricos e não tradicionais. No dia que ele chegou em casa, fizemos uma dinâmica, um processo de colocar pra fora as coisas ruins e ir transformando em coisas boas. Depois disso, eu já me senti melhor. E aí, começamos a falar em compor, de fazer música… o Terra também estava soltando algumas músicas e meio que lançando por lançar, sem planejamento, sem estratégia, sem divulgação… e neste mesmo tempo ele também entrou num processo de auto-sabotagem da carreira dele, que nas nossas trocas de ideia a gente percebeu que era um lance meio assim: “já que vocês não vão me amar, já que não vão me reconhecer o quanto eu sou foda, beleza. Agora vocês vão me odiar”. Aquela parada de causar, tá ligado!? Aí, ele começou a brincar com algumas coisas sérias, incomodar algumas pessoas do rap, inclusive…
[Conexão travou]
TERRA PRETA: É, eu estava nessa fase meio louca, sem sentido… na verdade, eu descobri que estava frustrado, e isso piorou na pandemia porque acabei ficando muito tempo sem fazer as coisas, estava fora do palco. Isso começou a me dar um desespero, uma angústia, e essa era minha forma de lidar com a situação, que era extravasar uma raiva que estava sentindo… às vezes a gente também não se atenta a pegadinhas que a nossa própria mente pode fazer. Você cuida do corpo, das finanças, de tanta coisa, mas esquece da mente. E durante uns 5 meses eu fiquei com a mente zoada, tentando encontrar uma resposta. Foi nesse momento difícil, eu encontrei o Cabal. Quando começamos a fazer um som, a situação foi dando uma apaziguada. Apesar de ainda estar em conflito, o processo criativo, de estar ativo, já me deu um controle. O Cabal disse que ajudei ele fazendo aquele processo… muitas vezes você consegue ajudar uma outra pessoa, mas não necessariamente consegue se ajudar. Tipo, você pode ser um bombeiro que ajuda alguém com a perna quebrada, mas não consegue tirar a faca que está cravada nas suas costas. Felizmente, depois consegui pensar sobre minha vida, colocar tudo no eixo, e essa parceria me ajudou bastante. Acho que naquele momento, a gente estava passando por coisas parecidas, ele na parte da depressão, que só ficava no sofá largado, e eu estava em conflito.
CABAL: Aí começamos esse processo de composição. Quando vimos já estávamos com 4 – 5 músicas prontas e decidimos fazer um EP colaborativo, junto com o produtor Ty Fig e o Maabeats, que é o engenheiro que mixa e masteriza os nossos sons… e a gente fez um trampo muito foda. O Terra ajudou a me atualizar, porque eu estava muito desatualizado, principalmente do trap, porque sou um cara que vem lá do boom bap (nós dois)… só que o Terra sempre foi um cara que está atualizado no que ele ouve e no que faz, tanto nas melodias e nos flows… e a gente acabou produzindo esse EP. Antes, a gente foi num terreiro de Umbanda, e a mãe de santo lá do terreiro falou assim pra nós: “vocês são irmãos de alma, vocês se complementam”. É como se a gente fosse o Pink e o Cérebro… eu entrei com essa parte de negócios, networks, estratégias, de planejamento e também de caneta (lógico), mas o Terra é o responsável de criar todos os beats junto com o produtor, todas as melodias, todos os flows… foi uma sinergia perfeita. E aí, lançamos “Irmãos de Alma”, “Meninos de Verde”, que fizemos para o Palmeiras – também tem esse lance que nós dois somos palmeirenses -, lançamos mais alguma coisa ou outra ali e agora o ‘POP’.
E como o EP foi construído?
TERRA PRETA: O POP veio dessa continuação e da necessidade da gente fazer um novo trabalho. A música POP já estava selecionada… e eu fico gravando prévias. De 2017 pra cá, eu devo ter gravado umas 2500 prévias. Então, eu tenho várias músicas, e essa era uma das que já tínhamos uma ideia principal, que no Hip Hop a gente chama de reference track – um flow já elaborado e um refrão. Como a gente tinha diversas músicas, escolhemos essa por ter um refrão legal… porque às vezes é legal trabalhar com uma cartela ampla de músicas. É como se você estivesse numa montanha de carvão, acha um diamante e começa a lapidar. O Cabal veio na parte da escrita, porque mesmo eu fazendo minha parte, ele dá aquela canetada final. Hoje a gente trabalha num processo que consideramos sem ego: eu faço melodia pra ele cantar, ele faz as multi silábicas nos meus versos, coloca as punchlines… e a música tem a ver com toda nossa carreira, porque o Cabal é o primeiro rapper que estourou um hit de club (balada) que é “Senhorita”. Esse foi o maior hit pelo menos até 2010… é um som que representa um conceito, que era o rapper sendo o protagonista no quesito de levar o rap para o pop, e ele lutou por isso na cena, ao mesmo tempo que tinha a necessidade dele provar que era um MC que de fato começou a partir das raízes, das casas de cultura de hip hop, na conexão que fez com o DJ HUM, com os caras da Academia Brasileira de Rimas… que era um rap underground. Assim, ele conquistou um certo destaque com Senhorita e teve que mostrar a importância de ter uma música pop o suficiente pra tocar na rádio e fazer show pelo Brasil inteiro.. Só que a cena ainda não aceitava isso. Por isso, ele foi o primeiro rapper que falou: “o rap tem que ser profissional”. Quanto mais ele falava isso, mais causava problemas, porque a nova galera do rap que estava surgindo naquele período (eu, Emicida, Rashid, Projota, Rincon, Nocivo Shomon), essa galera de 35 anos estava começando a fazer rap, só fazia underground. Esse pessoal nunca tinha feito grana, ido num canal de TV, não tinha esse profissionalismo… então, geral fazia (entre aspas) por amor, pela cultura, e queria fazer o som naquele estilo. Quando o Cabal veio falando que o rap tinha que ser pop (de popular), as pessoas não entendiam e ficavam com raiva… pelo fato dele ser um rapper branco de olhos claros e ter uma postura dos caras da gringa, era mal assimilado. Como tinha uma galera ascendendo e o Cabal já estava fazendo sucesso, aconteceram vários conflitos. Pra mim, até hoje eu acho que a qualidade do som que ele fazia tinha a mesma qualidade do rap gringo dançante que tocava na balada.
CABAL: A galera usava a palavra pop como uma coisa ruim. Por isso, eu acho tão foda o título desse nosso EP, porque lá atrás a gente já era pop e éramos mal vistos. Hoje, a gente continua sendo e o rap também se tornou.
‘Agora, eu me sinto na melhor fase da minha vida porque hoje sinto que tenho a mesma produtividade de quando tinha 20 anos, mas com a maturidade de um homem de 42 anos”. – CABAL
Pegando esse gancho, vocês se consideram pioneiros em levar o rap brasileiro para o cenário pop, e acreditam que foram injustiçados por não entenderem a visão?
TERRA PRETA: Eu acho que o Cabal foi o pioneiro nessa ideia, porque ele realmente foi o único artistas que levantou a bandeira, embora outros artistas tivessem nesse mesmo pedestal. Tinha o Gabriel O Pensador que tocava nas grandes rádios…
CABAL: … Mas não tocava nas baladas….
TERRA PRETA: Real. Eu curtia, mas ele não estava no meio do hip hop. Não tocava nem na balada nem nas festas de rap, mas a gente ouvia no rádio e achava legal. Comigo já foi um pouco diferente, porque eu vim com tendências e musicalidades que não eram aplicadas no rap brasileiro. Quando comecei em 2000 eu ouvia Tupac, e toda música tinha um cara cantando refrão. Percebi que os melhores faziam isso. Você pega Juice, do Notorious BIG, e tudo que era foda de rap tinha um refrão com R&B, mas eu ainda não sabia o que era. Mais tarde no (programa) Balanço Rap (da 105 FM), provavelmente pelo Ice Blue ou KL Jay, que já tocavam coisas diferentes. O rap estava muito viciado na questão do gangsta, na mensagem e na visão mais dura. Era uma coisa muito tensa, e não tinha um bagulho divertido. Tanto é que nos shows você só via homem, porque não tinha uma sonoridade que fosse gostosa, quente o suficiente pra juntar o masculino e o feminino.
CABAL: As mulheres que colavam tinham que se vestir praticamente como homens porque rolava um machismo brabo no rap, e não era permitido a sensualidade. O feminino era reprimido….
TERRA PRETA: Tanto é que as mulheres tinham um linguajar bem parecido com o dos homens… e vi que tudo isso destoava do que eu via nos clipes de rap que passavam na MTV, que eram muito mais equilibrados. E eu sentia que o R&B era o maior atrativo, porque trazia uma calma, aquela coisa legal e era muito musical pra mim que tinha vindo da igreja. Eu sempre ouvi gospel, e o R&B é nada mais nada menos que um desmembramento do gospel e do blues. E aí, quando eu ouvia Tupac e via um cara fazendo o refrão, eu queria ser o cara que rimava e fazia o refrão. Isso naturalmente começou a fazer parte da minha essência, mas as pessoas começaram a me colocar na caixa do R&B. Então, eu só tinha que fazer R&B. Foi aí que eu fiz minha primeira mixtape: “Milionário em Treinamento”. Ela influenciou muita gente. Até hoje as pessoas vem me dizer isso, até os caras do funk.. Como eu era o mais novo, eu absorvia tudo que estava ao meu redor. Com 10 anos eu já estava escrevendo minhas primeiras letras e absorvia tudo que ouvia. Mas quando comecei a fazer de fato, tomei um tapa na cara… eu já estava fazendo trap, só que não podia falar que era trap, porque se eu falasse as pessoas não iriam entender. Não existia nem a possibilidade. É ruim você se sentir desvalorizado, porque anos depois o trap se transformou no que conhecemos hoje, mas faz parte do processo. Acho que eu lutei para que tivesse um ambiente mais saudável pra gente exatamente fazer todos os tipos de sonoridades. Hoje posso consumir o Froid, que faz um som com letras mais filosóficas, faz você pensar e dar risada, ao mesmo tempo posso ouvir o Filipe Ret, que está fazendo um bagulho totalmente consumível pela mídia, e também tem o Djonga fazendo um som mais difícil e consegue alcançar esse status. Só que naquela época era impossível um cara que faz um som igual o Djonga chegar onde chegou. Um cara que faz um som igual ao Emicida antes não tinha essa possibilidade, porque não tinha público, mercado nem entendimento do que era hip hop. Tudo bem, faz parte da vida, mas ao invés de me sentir frustrado, hoje eu me sinto grato por ter esse ambiente mais livre para trabalhar.
E como vocês observam o rap hoje já com uma certa ascensão no mainstream e falando temas que fogem do que era falado antes, como questões sociais, violência e racismo?
CABAL: Eu vejo como uma situação assim: tem a casa de uma família com os filhos pequenos, os pais ditavam as regras e os filhos obedeciam. Aí chega uma hora que essas crianças se tornam adultos e falam: agora é com a gente”. Então, acho que é natural. É uma parada de geração, porque além de ter a mudança de contexto… óbvio, o rap está inserido no contexto do mundo, e tudo mudou com a velocidade que a informação chega pela internet, e com o amadurecimento de vários assuntos que antes eram tabus. Então, apesar de eu concordar com você que o lance do protesto, da violência e do racismo tem ficado em segundo plano, eu (é minha opinião, não estou afirmando de maneira alguma) sinto que os jovens hoje estão mais bem informados do que antes pela facilidade do acesso à informação. Para mudar alguma coisa, não adianta você ficar do lado de fora pedindo pra mudar. Isso também é importante, mas na hora que você consegue se infiltrar e mudar de dentro para fora é onde está a verdadeira mudança. E acho muito foda ver caras como Major RD, e muitos outros artistas, que não tem nada de pop, no sentido de ser o queridinho da mídia, atingindo um patamar alto. Acho muito foda essa não mais dependência da mídia tradicional para você se tornar popular, porque tem o lance do mainstream e do underground (não falando musicalmente, mas de alcance de público), mas a partir do momento que um cara faz um som underground e consegue atingir o público pop é maravilhoso. Esse é o protesto em si. É o sucesso do jovem preto da periferia.
TERRA PRETA: É como aquela história, que não sei se é uma lenda, do cavalo de Troia: pra você mudar, precisa ter uma embalagem e dentro dela traz a surpresa. Como é que você é infectado por um vírus no computador? Você clica num bagulho que acha que é uma coisa, e quando vê é outra. Então, eu acho importante os artistas terem flexibilidade para tratar de vários temas, mas com um viés. Quando você ouve o Baco Exu do Blues fazendo um mega hit cantando te amo desgraça, vai falar que a música é normal? É totalmente fora da curva e o próprio trabalho do Baco traz a busca do homem negro por seu espaço e a conquista de coisas. As pessoas esquecem também, que além do protesto, você tem que ter a arte envolvida e a arte faz as coisas ficarem belas. Se não tiver beleza, vai ficar como no episódio do Maluco no Pedaço que o Tio Phil falava para o Will: “você foi num show de rap? Eu não gosto de rap, porque parece que os caras estão num leilão (risadas)”… se tiver um cara lá o tempo inteiro dando o lance na sua cabeça, batendo o martelo na sua cabeça o tempo inteiro, vai ter uma hora que você não vai aguentar. Precisa ter nuances e dinâmicas pra você realmente mergulhar na mensagem.
“O Cabal me dá a liberdade de fazer os flows, pensando na parte dele também. Eu trago o diamante e ele lapida”. – TERRA PRETA
O rap ter atingido um outro público consumidor e outros lugares fora do seu ambiente natural (que era a periferia), ajudou na mudança tanto da mensagem quanto das atitudes?
TERRA PRETA: Mudou sim, com certeza! Mas teve uma coisa natural dos artistas de querer procurar um novo caminho. Não foi o público, mas sim os artistas que tomaram a iniciativa. Essa galera nova começou a fazer música tendo um outro ponto de vista que não era aquele rap gangsta. A partir daquele momento começou a puxar um outro público, porque era rap mas tinha uma coisa diferente. Por exemplo, Emicida com Triunfo… um cara que estava fazendo faculdade, que está saindo de casa pra conquistar coisas na vida, aquilo é muito motivacional. O mesmo aconteceu com o Projota… tudo aquilo foi importante porque tinha uma galera que não estava querendo ouvir mais sobre problemas e a periferia também estava num estado de mudança. Então, os novos públicos começam a chegar quando os artistas também se posicionam.
Cabal, sempre quis saber porque você parou de fazer rap naquele período e se afastou de tudo e de todos. Foi por se sentir rejeitado dentro do rap ou foi uma decisão mais por motivos pessoais?
CABAL: Quando eu decidi parar e me afastar foi por uma frustração muito grande que eu sentia por não conseguir mais fazer sucesso e também (lógico) por causa de várias merdas que eu fiz e de tretas… mesmo eu nao tendo começado elas, quando me vi envolvido em tretas, eu fui com os dois pés no acelerador. O que aconteceu: eu estava num momento pessoal muito ruim, de uso e abuso de drogas, deprimido… e chegou um momento que eu tinha que sair ou ia morrer. Eu precisei parar e cuidar de mim, porque num primeiro momento eu nem pensava se ia ou não voltar. Eu só senti que precisava parar, e aí foram alguns anos de autocuidado, de ficar bem comigo mesmo, e conforme eu fui ficando bem senti vontade de voltar a fazer rap e estar envolvido na indústria musical de alguma maneira. Ainda assim estava inseguro… quando eu parei, não parei de cantar e continuei acompanhando. Eu fechei meu computador um dia e abandonei tudo.
Fiquei uns 2 anos sem entrar em nenhuma rede social e sem escutar nada de rap. Depois fui voltando aos poucos. Agora, eu me sinto na melhor fase da minha vida porque hoje sinto que tenho a mesma produtividade de quando tinha 20 anos, mas com a maturidade de um homem de 42 anos. E muito disso é graças ao Terra Preta que é um cara que me salvou… e ele é o pioneiro de misturar o rap com R&B. E quando a gente se trombou, o Terra me colocou lá em cima. Aí, vi que tinha alguém que ainda acreditava em mim. Isso me ajudou muito a acreditar em mim. Acho que nada é por acaso, eu tive que passar por todo esse inferno na vida pessoal e profissional pra amadurecer e poder hoje ter uma segunda chance. isso é louco porque poucas pessoas tem uma segunda chance na vida, mas me sinto grato. Não sinto raiva, não sinto mágoa, eu não tenho essa sensação de ter sido injustiçado. Acho que as coisas aconteceram do jeito que tinham que acontecer… faltou maturidade da minha parte, com certeza, faltou maturidade também da cena do rap, de uma maneira geral, de aceitar que as coisas poderiam tomar caminhos diferentes. Mas que bom que a gente está aqui agora trocando essa ideia e podendo refletir sobre o passado, presente e o futuro.
TERRA PRETA: Quando a gente vislumbra o futuro, entendemos que foi necessário passar por tudo isso, porque cria uma resiliência e acaba enxergando as coisas com menos ansiedade e mais objetivo.
Nas quatro músicas do EP dá pra observar essa sintonia de vocês. Um toca o outro mata no peito e devolve. Como foi estruturar esses sons?
TERRA PRETA: Essa coisa da troca tem haver com coisas que a gente ouviu anos atrás. Eu sempre fui fã de Method Man e Redman, Big Pun e Fat Joe, Little Brothers… então a referência de dupla vem lá de trás. A gente já tem uma caminhada que faz a gente ter uma percepção de como tem que soar a parada. É como se fossemos o yin-yang, que tem o positivo e o negativo. Então, em determinadas músicas eu posso ser super melódico e o Cabal quebrar essa melodia com um flow rasante que te prende. Isso tem a ver com as várias referências, e o processo criativo no geral eu já venho com uma ideia pré-estabelecida do que vai ser na parte musical. O Cabal me dá a liberdade de fazer os flows, pensando na parte dele também. Eu trago o diamante e ele lapida. Por isso, eu me sinto seguro em ter alguém que mexe na minha rima.
CABAL: Talvez se fosse alguns anos atrás essa parceria não daria certo porque eu não deixava ninguém mexer na minha música, mas hoje deixamos os nossos egos de lado. Tanto é que muitas vezes a gente compõe a letra e depois decidimos quem que vai cantar qual parte. O nosso foco é na arte mesmo. Fazer música da melhor maneira possível, que seja mais impactante, motive, emocione as pessoas e que de alguma forma toque nos sentimentos. E é por causa disso que tem dado tão certo.
Na música POP vocês citam alguns artistas que são referências na música pop em geral. Hoje quem vocês definem como ícone?
CABAL: Drake
TERRA PRETA: Drake
Por que ele?
CABAL: Porque ele rima pra caralho, canta bem, sabe fazer marketing, se envolve com diferentes artistas. Esses dias ele estava cantando com os Backstreet Boys. E eu estava pensando que o Drake já ganhou mais dinheiro que grandes astros da música pop na vida inteira. É lógico que o mercado é outro, o momento é outro, mas pra mim ele é o cara que melhor personifica a cultura pop hoje.
TERRA PRETA: O cara tá fazendo música, tá fazendo arte. Então, ele representa muito. Outro cara é o Kanye (West). Ele colocou a arte de um modo geral dentro da música dele. Essas referências que quebram o padrão da música, pra nós é muito mais vantajoso porque a música acaba sendo ingrata em determinado momento. Se você depender necessariamente da música, o público pode mudar de gosto em menos de 2 – 3 anos. Tem muitas variáveis.
E quais são os próximos planos de vocês?
CABAL: A gente decidiu que agora vamos seguir caminhos solos. Vamos dar um tempo na dupla, porque tudo tem um tempo. E nosso encontro, irmãos de alma, acredito que foi justamente pra um ajudar o outro a se levantar, se recolocar, se encontrar, aprender e sentimos que agora é a hora de cada um fazer o seu voo solo pra num momento futuro a gente voltar a voar juntos. O que vai ter é um intervalo, não é o fim. A gente acredita que sozinhos podemos atingir resultados que em dupla não conseguimos. Continuamos parceiros, irmãos, em contato, em sintonia nas composições e ideias.
TERRA PRETA: Precisamos dar valor à singularidade. Embora nosso público tenha dado uma dividida, quem curte o Cabal por determinado motivo não vai curtir o Terra Preta e vice-versa. Temos que atender demandas diferentes, prosseguir e crescer. Lá na frente a gente faz outros projetos e vamos fechando os ciclos de tempos em tempos. É interessante que lá na gringa existem muitos álbuns colaborativos, mas aqui no Brasil ainda existe uma resistência de ser fazer álbuns colaborativos, existe um ego. Mas continuamos quebrando paradigmas.