Já fazia um tempo que queria trocar ideia com o Zudizilla. Nos trombamos em 2019 pouco antes da cerimônia de entrega do Prêmio SIM, da SIM São Paulo. Falamos rapidamente sobre uma possível conversa, e ele me disse pra marcarmos um dia na casa dele e tomarmos uma cerveja. É bem provável que o MC não se lembre, porque naquele momento estava numa correria frenética. Mas aí o tempo passou e essa conversa ficou no limbo.
Passados 2 anos, esse encontro aconteceu. Só que cada um na sua casa por causa da pandemia. Via Zoom, às 9h10 da manhã, iniciamos o papo falando de experiências paternas e de como os filhos moldam nossos planos. Tudo gira em torno deles. Zudizilla está curtindo essa fase de pai. Inevitavelmente, rimos bastante. Bem à vontade, ele desenrolou as ideias sobre o EP “Manhã, Tarde e Noite”(MTN), vivências, indústria musical, rap e os próximos volumes de Zulu. Assim como nas letras, o rapper é muito bem articulado, passa suas visões de forma clara. Sabe da sua relevância e de onde quer chagar com sua música. É um sábio com muita coisa para compartilhar.
“Eu não acredito que a periferia fale só gíria, não acredito que não entenda outro tipo de linguagem… e linguagem no Brasil é inserção social. A questão de tu conseguir dialogar com outra pessoa, dentro de um português palatável, que outra pessoa consiga experimentar e absorver, te inseri em alguns lugares mesmo que tu não tenha dinheiro pra isso. E eu sou a prova viva. Minha mãe sempre me falou pra aprender as melhores palavras que eu pudesse (do dicionário)”, diz. “Aí eu comecei a ler pra caramba. E toda vez, eu enquanto moleque, usando tênis três vezes maior que o meu pé, uma jaqueta gigante e uma calça de cinco semanas que eu não conseguia tirar… ainda assim eu trocava ideia tete a tete com os professores que ficavam abismados, tá ligado!? Queriam até me subir de série mais rápido, porque eu tinha uma forma de me expressar muito fluída pra minha idade. Então, eu não baixo o meu nível (não é inteligência) de perspicácia… não torno mais fácil para as pessoas entenderem meu trabalho, porque eu quero que a periferia ande pra frente, e bora todo mundo”.
E essa nova vida de pai, como é que tá?
O barato é louco! [risadas]
Sei bem como é, tenho dois aqui…
O moleque é mil grau.
Agora o seu trabalho também tem toda a influência da paternidade, né!? Tudo o que você faz ou planeja fazer se baseia primeiro nele…
Eu nunca fui uma pessoa de planejamento, tá ligado!? Sempre fui de viver e entender o que a vida estava me proporcionando, e a partir daí eu ia jogando com as armas que eu tinha. Agora já não dá mais. Preciso ter metas, planejamentos e tentar ser o mais fiel possível, porque o menor vacilo que eu dou (dentro dessa questão de pra onde está caminhando o meu corre), pode interferir diretamente na vida dele, tá ligado!? Seja na questão de sucesso enquanto artista ou no tempo mesmo. Se eu fico mais tempo no estúdio, aí ele fica sozinho com a minha esposa e enlouquece minha esposa, depois minha esposa me enlouquece, e eu fico louco sozinho porque eu não tenho quem enlouquecer [risadas]. Então, tipo, tudo está sendo uma grande negociação a partir do momento que ele chegou… e é daora, não posso dizer que é ruim, porque eu venho de uma dinâmica de não ter respeito por muitas coisas. Sou uma pessoa que cresceu totalmente indisciplinado e ele traz uma noção de disciplina e de caráter que é muito massa, muito necessário na real.
E de que modo isso interfere na sua criatividade diária, ainda mais nessa realidade de pandemia?
Eu sou uma pessoa que cria muito. E eu crio mais por uma relação de sobrevivência do que por sobrevivência, profissão ou vontade. Criar é uma necessidade física. Então, eu já criei nas piores condições… dá boca de fumo ao estúdio enorme. Então, essa questão de eu ter um filho que parece um liquidificador com a tampa aberta e ligado na última velocidade não chega a ser o meu maior empecilho, porque faz parte da minha dinâmica enquanto ser humano, tá ligado!? Eu sempre fui uma pessoa criativa e que produziu coisas nos piores momentos da vida… o meu fluxo criativo nunca parou. É mais difícil? Óbvio, especialmente na questão da execução… nem é tanto a relação de criar. Executar é mais difícil porque ele grita, demanda colo e etc. Então, na hora de executar fica um pouco complexo. Aí, tenho que dar uma rebolada no tempo, achar um espaço entre o que a Luedji (Luna) está fazendo e o que estou fazendo para poder me entocar no estúdio. Mas não posso dizer que meu fluxo criativo diminuiu. Na realidade, até aumentou um pouco, porque é isto: meu filho me traz demandas novas enquanto homem, e elas viram temáticas diferentes para os raps que eu escrevo. Assim, tenho outros assuntos para abordar, tenho outras temáticas pra trazer… e esse trabalho “Manhã, Tarde e Noite” tem essa dinâmica de mostrar um lado meu mais família. Trago ele num dos filmes, e tem essa relação de mostrar os três lados do indivíduo que porta arte: de MANHÃ é o cara que curte, fazendo uma parada que tem como hobby… de TARDE é o cara família, e de NOITE é o cara que leva os outros dois nas costas. Então, nesse trampo eu consigo trazer ele (o Dayo) e incluí-lo dentro dessa dinâmica. E pensar que a partir do momento que ele nasceu, o meu trampo passa a ser voltado pra ele, eu acredito que todo trampo que eu fiz até hoje é automaticamente voltado pra explicar pra ele e pra outros como foi minha vida, como foi minha vivência… e que ela não é tão diferente da vida de várias pessoas desse Brasil caótico que a gente vive. Por isso, eu costumo pensar e entender que toda produção artística que pauto desde sempre já é destinada a ele de alguma forma, sem precisar citar ele num som. O que eu produzo sempre foi pro meu filho mesmo sem saber se ia tê-lo ou não, porque eu tô produzindo coisas para que sejam meu legado. E ter um filho pra dar essa continuidade e entender o que eu tô fazendo, faz as coisas terem sentido… eu não tive a oportunidade de pensar como vai ser minha produção daqui pra frente com meu filho, porque tudo o que eu tenho para lançar eu só estou lapidando pra entregar da melhor forma possível. E a partir daí eu consegui entender, enquanto pai, indivíduo e até enquanto morador de São Paulo, porque eu já venho lá do Sul com essa tese de escrita, saca!? Meu filho eleva o nível das coisas que eu crio, porque fica mais difícil criar com ele, mas não é impossível.
Esses dois sons inéditos que vão fazer parte do EP já estavam prontos ou foram canetados nesse período pandêmico?
Eu cantei nesses últimos tempos, mas foi, sei lá… final do ano passado. Foi dentro desse período de pandemia. São três músicas: a primeira é Sintonize, que não é inédita e eu já queria lançar como uma forma de me despedir do Zulu Vol.1 e partir para um novo momento. Então, eu encerro esse ciclo com esse, e trago outras duas dinâmicas de trabalho que são coisas que pautam muito bem meus próximos passos. Eu sempre lanço alguma coisa antes de soltar um projeto mais completo, até para que as pessoas entendam qual é a dinâmica que eu vou abordar desse momento em diante. Então, escrevi essas tracks (Típico e N. Word) entre agosto e outubro de 2020, mais ou menos. O Dayo já tinha nascido. Já tava metendo o louco [risadas], mesmo que bebezinho… e tem muita coisa nessas duas músicas inéditas, que são muito pertinentes para o momento que eu vivi com ele, ainda que eu não fale nele nas músicas, ele tem uma interferência nessas criações.
“Estou aqui pra trazer a minha verdade, e sei que trazendo verdades consigo chegar em pessoas que também são de verdade”.
É que suas músicas também não são datadas. Quando ouvirmos Faça a Coisa Certa daqui a 10 anos as ideias ainda serão pertinentes. E a narrativa que você faz nesses três sons apresenta diferentes personas de uma só pessoa. Conectá-los foi algo pensado ou tudo foi surgindo naturalmente?
Cara, foi surgindo, na moral! É essa fita de eu trabalhar com as armas que eu tenho. Fui pro Sul visitar minha família (e minha mãe não tinha visto o Dayo pessoalmente ainda) e depois a gente foi pra Bahia. Nessa ida pro Sul, já tínhamos fechado com a galera da Corte Filmes, que são bons pra caramba (posso dizer que sua os melhores lá do Rio Grande Sul na questão de videoclipes). Só que a gente foi entendendo, e percebendo os momentos. Aí chegamos à conclusão, que daria um compilado muito daora e muito original… a gente tem muito a dinâmica do EP no Brasil, mas não é fiel ao conceito do formato. A gente vê EP com 12, 8, 10 músicas. E o EP é um play extendido. Às vezes é um single e mais uma ou (no máximo) duas músicas. Assim, pensamos nesse formato de EP pra trazer isso… quando eu sentei para decupar esse trabalho, eu logo percebi que tinha uma narrativa, uma dinâmica. Essas três músicas vão por se só amadurecendo, tá ligado!? Como a Sintonize tem um ar mais esperançoso até na questão rítmica… a próxima track, que se chama Típico, já é uma música que tem maturidade. Ela traz a questão racial, mas não como pauta principal. Ela fala que a questão racial foi um empecilho, mas que há necessidade de se passar por cima dele. E ser exposto a esse tipo de prova, formou o caráter desse cidadão que se torna, automaticamente, maduro ainda antes da idade, saca!? Antes de eu ser homem, eu já era homem de verdade… eu trabalho muito com coisas reais, trabalho muito com a minha vida enquanto matéria prima para o meu trabalho. Eu não sou storytelling. Não estou aqui pra contar historinha. Estou aqui pra trazer a minha verdade, e sei que trazendo verdades consigo chegar em pessoas que também são de verdade. Acho que não tem nada mais potente do que falar a verdade… e como eu tava com a minha família, pensei: porra, cabe maneiro de eu fazer esse trampo e colocar mais minha família em voga do que eu. Tanto que eu apareço em poucos takes e nenhum deles eu tô cantando. É mais um modo de mostrar minha família pra geral entender que aquela esperança que o Sintonize me apresenta, que me coloca no lugar do artista que conseguiu chegar a algum lugar, isso eu consigo dividir com meus familiares, com as pessoas que eu amo. Então, eu chego nesse segundo momento… e estando lá fazendo essa parada, eu automaticamente imaginei: porra, já que eu tô fazendo toda essa jornada perante esse personagem Zudizilla, tentando desmembrar ele para as pessoas entenderem que Zudizilla é, nada mais natural do que chegar no primeiro palco que eu já pisei na minha vida, que é o Galpão. Antigamente era Galpão do Rock, e depois que eu fiz show lá virou só Galpão… porque só tocava rock, só tocava metal… e eu frequentei muito na minha adolescência inteira. Aí um dia surgiu a oportunidade de fazer um show nesse mesmo lugar. Aí eu pensei: não é um lugar onde a galera curte rap, a galera curte só hardcore e punk nesse pico. Mas no contraponto era isso mesmo, tá ligado!? Meu trabalho dialoga com essas vertentes e vem disso. Então, nada melhor do que tocar nesse lugar. E a partir do momento que eu fiz esse show lá, o rap da minha cidade (Pelotas) e do Sul mudou completamente. Ganhou outro caráter e a galera consegue entender e atrelar o underground ao conhecimento, não à sujeira, não ao mal feito. Por isso, nada mais justo do que eu voltar pra esse primeiro lugar que me deu esse start e trazer memórias… o último som é um agradecimento a todas as pessoas que entenderam de alguma forma o meu corre, que me ajudaram a chegar no lugar que eu estou e que (apesar de tudo) eu continuo muito bem e obrigado, tá ligado!? Segue uma linha: o primeiro é um artista, o segundo é o que o artista fez com o sucesso da sua arte e o terceiro momento é da onde vem esse artista, o que fundamentou e formou ele.
O que você considera sucesso?
Pô, cara! Eu passei fome. Então, sucesso pra mim é conseguir comer, conseguir pagar minhas contas. É uma parada que pra mim é muito de progresso, porém, acho que a gente não pode se pautar nisso porque alcançar a dignidade não pode ser tido como sucesso… tipo: comer, vestir, ir e vir são pautas básicas da sobrevivência do ser humano e todas as pessoas têm que ter direito a isso, garantido pela Constituição. E quando não tem, tu não tá tendo dignidade… e o nosso sonho enquanto periférico, e numa relação subdesenvolvida dentro desse país, a gente acha que coisas básicas se tornariam sucessos. A partir do momento que eu consegui estabilizar a minha relação de vida e da minha família também, eu tenho minhas obrigações para com meu filho, mas também tenho obrigação com a minha mãe que tá lá no Sul ainda e parou de trabalhar faz pouco tempo. Eu sou uma pessoa que tem metas grandes e metas menores, saca!? Minhas metas menores me apontam para as maiores, mas eu preciso primeiro atingir minhas pequenas metas para ficar mais próximo do meu objetivo maior. E conseguir enxergar cada avanço e cada passo é uma forma de sucesso… claro, a gente tem o sucesso midiático e mercadológico. Só que se tu for pautar sucesso pelas coisas que você consegue acumular (pelo acumulo de parada), eu acho que isso vai te tornar frustrado rapidamente. E se frustrar é uma parada que impede que tu consiga avançar, seja pelas pequenas ou grandes metas. Tento fugir da frustração dessa forma…. eu atinjo o sucesso em quase todos os dias da minha vida por causa dessas metas. Tipo: esse mês é tanto que eu tenho que arrecadar de grana e quando rola, pode crê, é cervejada e baseado [risadas]… celebrar as pequenas metas da vida sem esquecer que existe algo muito maior pra ser atingido e tentar de nenhuma forma esquecer ou recuar. A segunda track desse EP fala disso: sem recuar nenhum centímetro.
Nessa você também não fica preso ao jogo da indústria de ter que lançar um single a cada semana, a cada mês. Seus álbuns geralmente têm intervalos de três anos. Para o próximo volume de Zulu, pretende manter esse mesmo espaço de tempo ou vai soltar ainda em 2021?
Cara, sai o volume 2 este ano e o terceiro volume sai ano que vem, porque na verdade esse era o único projeto que eu queria lançar de forma mais enxuta, mais próxima um do outro, até pelos formatos que, tipo, nem todos são discos…. HA! Olha a dica… [risadas] O primeiro volume é um disco, OK! Mas os outros dois aí são outra fita. Então, eles se completam como um todo. Eu gosto de dar esse tempo para as pessoas absorverem o meu trabalho, porque sou uma pessoa que não diminui o meu quociente inteligente pra chegar num padrão comum, pois eu não acredito que a periferia seja burra como a galera imagina, tá ligado!? Eu não acredito que a periferia fale só gíria, não acredito que não entenda outro tipo de linguagem… e linguagem no Brasil é inserção social. A questão de tu conseguir dialogar com outra pessoa, dentro de um português palatável, que outra pessoa consiga experimentar e absorver, te inseri em alguns lugares mesmo que tu não tenha dinheiro pra isso. E eu sou a prova viva. Minha mãe sempre me falou pra aprender as melhores palavras que eu pudesse (do dicionário). Aí eu comecei a ler pra caramba. E toda vez, eu enquanto moleque, usando tênis três vezes maior que o meu pé, uma jaqueta gigante e uma calça de cinco semanas que eu não conseguia tirar… ainda assim eu trocava ideia tete a tete com os professores que ficavam abismados, tá ligado!? Queriam até me subir de série mais rápido, porque eu tinha uma forma de me expressar muito fluída pra minha idade. Então, eu não baixo o meu nível (não é inteligência) de perspicácia… não torno mais fácil para as pessoas entenderem meu trabalho, porque eu quero que a periferia ande pra frente, e bora todo mundo. Assim, eu entendo que o meu trabalho precisa desse tempo pra galera entender, absorver. E eu tento respeitar esse tempo. Óbvio, também tem uma questão muito natural (dos trabalhos não saírem um em cima do outro) de eu não conseguir fazer um trabalho tão próximo um do outro com a qualidade que eu quero entregar para as pessoas. Os meus heróis, enquanto artistas, demoram pra trabalhar, tipo Jay-Z demora, Mos Def quase nunca lança, Common sempre demora muito pra lançar também. Eles sempre pautavam que a música precisa de tempo pra maturar… pra vim ao mundo… é que nem feijoada: ela tem que descansar e no outro dia tá naquele jeitão, mas tu pode comer no mesmo dia que vai tá boa também. Porém, o tempero só vai groovar mesmo se tu esperar um pouco. Então, eu gosto de dar esse tempo para galera absorver, ainda mais que eu não sou uma pessoa que trabalha com a dinâmica de grandes hits. Se as músicas hitarem é por si só, mas não estou em busca de um grande hit. Busco uma grande narrativa, de uma grande pauta, de uma grande temática, e tentando ser pertinente ao meu tempo. Estou tentando ser útil, não ser o melhor, o mais rico ou mais foda. Eu quero ser o melhor, eu quero ser o mais rico e eu quero ser o mais foda, mas isso vai vim de acordo com o que o mundo possa me proporcionar, porque estou tentando ser útil com a causa que eu abraço e as questões que acho que são pertinentes. Por semana, eu devo fazer cinco músicas e gravar umas duas ou três… toda semana. Tenho um arsenal de músicas que quando eu morrer vai ter vários discos póstumos, tá ligado!? Mas vários mesmo… eu também sou meio receoso, tenho um cuidado a mais com a música também (não que outras pessoas não tenham, mas eu sei que eu tenho). Isso me faz me dar uma seguradinha.
É uma forma também de não tornar a música descartável, porque você vai lançando um single atrás do outro e aí passam-se os meses e as pessoas já enjoaram. Aí vem a cobrança para que o artista lance mais novidades. Suas músicas são densas. Você demora pra absorver as ideias, mas quando entende é aquilo: Caramba, olha a visão do Zudizilla…
… não sai de playlist mais. É sério. As pessoas que conseguem se conectar com aquilo que eu tô trazendo, elas vão levar isso para o resto da vida. E aí, eu acho que nesse momento eu estou respeitando a arte, estou respeitando o rap, porque o rap é mais do que uma ferramenta pra me tirar do buraco. É uma forma de elevação coletiva da consciência de toda pessoa que está à margem. O rap vem como o grito do excluído, independente de qual lugar você seja. Ele pode te dar uma voz, pode te dar uma potência. E trabalhar com ele de uma forma meramente mercadológica é só um desperdício. Não acho que é certo nem que é errado. Amanhã ou depois a gente estará sendo parado pela polícia, um parente nosso vai tá sendo assaltado, um amigo vai tá morrendo e tu vai ficar mó triste sabendo que tem na mão uma arma que pode frear essa feracidade do mundo. Tá na nossa mão… o MC, o cantor, o artista tem esse poder, mas também é um indivíduo que tem o livre arbítrio. Então, pode optar por fazer algo pela sociedade ou fazer algo por si… que tá certo também, tá tudo OK e ninguém tem que ficar apontando o dedo pra ninguém. Só acho foda quando o mercado dita o nosso tempo. O mercado é quem dita quanto tempo vai durar sua música, quanto a tua música vale e tem que dançar a dança. Acho que vai chegar um momento em que as pessoas vão escutar algumas coisas minhas que estão pra sair e vão dizer: “pô, o Zudizilla era muito mais jazz, era muito mais tal”… só que a galera vai ter que entender que eu também preciso flertar com o mercado. A gente não pode ficar com medo dele, porque esse lance de ser underground pra caraio impediu muitos artistas e muitos rappers de estarem hoje em dia aí na cena pagando suas próprias contas com os bagulho que faz. E eu não quero levar isso pra diante. Essa cruz aí foi só nossa, foi só da minha geração e acabou! O underground está vivo, tá ativo, mas é muito mais um estilo de vida do que propriamente um ritmo musical. Tu opta pela subcultura, tu opta pela contracultura, e isso não tem nada a ver de você flertar ou não com o mercado. Acho que todo artista tem em algum momento que ir lá no mercado e pegar o seu dinheiro mesmo, tá ligado!?
Até estou lendo uma das biografias do Louis Armstrong e teve vários momentos, principalmente entre o início e o meio da carreira, que ele fazia música comercial para simplesmente ganhar um dinheiro. Não era o que ele queria fazer, mas tinha que fazer para agradar a indústria e sobreviver também. Mas mesmo assim, criou vários clássicos que suprimiram essas músicas comerciais e fez dele um dos maiores (senão o maior) jazzistas de todos os tempos. Sempre vai existir essa necessidade….
… a não ser que você tenha já saído rico do rolê e decidiu fazer a arte pela arte. Mas se depende da arte, você em algum momento vai ter que olhar para o mercado com outros olhos e entender qual é o teu lugar ali. Porque também existe uma forma muito errada de observar essa dinâmica, que é olhar para o mercado, ver o que está funcionando e tentar fazer igual, abandonando aquilo que já faz. Tipo: é o trap que tá em voga, é o drill, é o grime que está em voga. OK! Quais são os elementos daí que funcionam naquilo que eu já faço? Mudar drasticamente o que tu já faz pra outra coisa é um ponto muito arriscado. Deixar de fazer o que tu faz bem pra fazer aquilo que outra pessoa faz melhor, vai te tornar um eterno segundo lugar, tá ligado!? Mas tem gente que nasceu pra ser segundo.
O título do segundo volume de Zulu vai ser “de César a Cristo”. Fala um pouco desse título, se é que você pode adiantar as informações.
Posso sim. O Zulu volume 1 eu não falei muito, porque eu deixei para as pessoas entenderem e interpretarem o que quisessem desse trabalho. E acho que a galera interpretou muito bem essa relação de estar num lugar e querer estar em outro, mas não querer deixar o seu lugar. Que era justamente o que a gente estava falando sobre mercado… tipo: eu estava muito bem no lugar que eu estava. Não estava mal no Rio Grande do Sul… morava bem, tinha minha grana, tinha meus shows e queria continuar lá e alcançar patamares maiores. Mas eu vi que isso era relativamente impossível. Então, vim pra onde minha possibilidade de expansão (como artista) é maior, sem deixar de fazer aquilo que eu sempre fiz lá. Apesar de estar em São Paulo, eu estou fazendo rap de Pelotas. E é por isso que o meu trabalho acaba se tornando um pouco único dentro da cena. OK! Chego nesse momento que eu consigo estabelecer essa dinâmica e as pessoas passam a entender quem é o Zudizilla, até onde ele quer ir, e até onde quer chegar… no segundo volume já é o momento de olhar para esse mercado. É o momento de entender que eu não posso ficar viajando a minha vida inteira sobre chegar a um lugar que eu não vou conseguir. Então, é o momento do “by the wins necessary” [pela necessidade da vitória]… é sobre formas de poder. César e Cristo são dois tipos de rei, saca!? Só que um governa pelo amor e o outro governa pela espada. Um pelo respeito e o outro pelo medo. Um pela oração e outro pela coerção. E eu posso ser os dois. Eu preciso ser os dois em algum momento. Só não sei qual dos dois é que vai predominar, mas dentro dessa dinâmica posso ser César ou Cristo, pois estou falando de formas de alcançar o poder… porque existe uma necessidade muito maior que durante o disco vai ser apresentada. Essa busca desenfreada por alguma coisa tem uma motivação muito especial, que já na primeira faixa é apresentada e na última faixa ela também está presente. Então, a gente tem uma grande jornada dentro desse volume dois, e falo jornada inclusive rítimica. Estou experimentando coisas que não experimentava… quem absorve o meu trabalho sabe que a última faixa dos meus discos sempre chamam o próximo. Então pode esperar um disco que parece Foco nos Planos, mas que ainda é mais Zudizilla. Quem conhece o meu trabalho vai se identificar com a primeira e a última faixa mais que o recheio. No recheio, eu entrego pra galera o que eu tenho pra dar. Seja pelo amor ou seja pelo ódio, o que eu tenho pra entregar é a forma que eu quero fatiar esse bolo do mercado pra pegar um pedacinho pra mim… é a forma como eu vou dialogar com ele, e eu espero que a galera me entenda e me compreenda porque eu tenho uma missão muito grande nessa minha vida, que vou apresentar nesse disco. Continua sendo um trabalho denso, adulto, porque eu não consigo sair dessa dinâmica de ser um pouco sério, mas eu também estou trazendo outras dinâmicas sonoras que vão me fazer ser absorvido por um outro lugar e por outras pessoas. E não que esse vá ser o lugar que eu vá habitar daqui pra frente, mas é o lugar que eu vou transitar muitas vezes. É um disco que vem com feat também… eu sou uma pessoa que não faz feat, e nesse trabalho estou trazendo outras pessoas que podem me auxiliar nessa minha busca e que entendem o que eu estou fazendo. São caras importantes dento da cena, que graças a Deus confiam no meu trabalho, e isso é uma das coisas mais massas do meu corre. Por mais que eu não tenha um milhão de views, o cara que tem oito milhões de views gosta do meu disco. Então é um bagulho muito louco pra mim, tá ligado!? Eu me entendo e sei qual é o meu lugar dentro desse grande redemoinho que é o rap.
Tudo depende do momento também. Tem hora que é necessário ir para o combate e tem hora que é mais suave…
… vou dar uma dica: o disco vem com duas metades. Ele tem César e tem Cristo.
Tudo isso é muito louco porque segue um conceito. Uma narrativa. E isso se perdeu ao longo do tempo. Hoje os álbuns são junções de vários singles que não se conectam.
Não tem mais álbum, velho! Na moral, essa é a grande verdade. A partir do momento que a galera lança, lança música e depois bota tudo num compilado numa capa feia pra porra e põe pra rua, isso não é um álbum. Um álbum merece carinho. É um livro. É um bagulho que o cara precisa dar play e absorver, saca!? Faça a Coisa Certa foi o último disco que eu fiz com uma música que leva o título do disco. Depois pensei: nunca mais vou fazer um disco que tenha uma música com o nome do disco, porque eu não quero que as pessoas escutem essa música primeiro. Eu quero que elas escutem todo o disco e entendam o título. E é a partir daí que parte minha forma de pensamento. Eu tenho um referencial artístico que me leva pra isso. Eu não estou inventando nada. O que estou fazendo não é loucura… grandes artistas trabalham assim, e eu estou tentando estabelecer um lugar que seja sólido… que uma tempestade não consiga me derrubar. Não vai ser um vento que vai me tirar do castelo que eu construi. Eu não posso me desesperar, não posso perder o controle das coisas que eu faço, mas eu preciso me locomover.
*Foto: Carol Castro