Contrariando todos os protocolos que rege a indústria da música, ainda mais se tratando de um artista independente, Zudizilla não avisou ninguém antes de colocar no mundo o EP “Le Fauve”. Antes disso, teve que defender sua estratégia, mesmo ouvindo que não era o certo a fazer. “Eu falei: quero fazer, então eu vou fazer, já era. Subimos nas plataformas, subimos os vídeos, fizemos tudo”, lembra. “Depois fui para Pelotas fazer os vídeos e quando eu volto para São Paulo, o Kendrick (Lamar) também lança um álbum de surpresa. E aí, o louco sou eu? Que nem diz o Felipão: O louco sou eu?” Essa coincidência provou mais uma vez que ele deve cada vez mais fugir das velhas dinâmicas de mercado, para não ficar refém da máquina.
Quem o acompanha desde o início, ou o encontrou no meio do caminho, sabe que seguir as regras não faz parte das características dele. Tratando-se de um tipo de temática que poucos estão acostumados a ouvir na sua voz – relações amorosas -, chegar sem avisar foi uma jogada ensaiada que deu certo. “Percebi uma mudança também do público que me ouve. Tem muito mais pessoas chegando”, ressalta. “Não sei até que ponto isso vai ser bom, até que ponto isso vai ser ruim”. A intenção dele não é brigar com o sistema, mas sim lutar contra ele. A diferença entre as duas disputas é que a briga tem final.
“Uma luta, velho, precisa de estratégia, precisa de técnica, precisa de versatilidade, precisa de respiro… a luta não termina, a luta não acaba, saca?”, reflete. Então, eu preciso toda hora me reinventar, me recolocar, para que eu seja cada vez mais útil para aquilo que eu abracei como causa de vida. Ainda que eu esteja mais feliz agora, e que talvez eu não seja mais tão dramático, eu preciso achar outras alternativas. Acho que esse é o trabalho do artista”.
Mudar a narrativa para um trabalho específico não quer dizer que Zudizilla vai deixar de lado a sua densidade. Só não quer (e nem precisa) ser denso o tempo inteiro. “Eu me alimento das coisas que eu crio. E aí, eu preciso saber muito bem quem é que eu quero virar daqui para frente, tá ligado?” Esse é um futuro que ele pretende desenhar. Mas não começou a pensar nessa mudança agora. Quando conversamos pela primeira vez em 2021, logo depois do lançamento do EP “Manhã, Tarde e Noite”(MTN), ele já vislumbrava essa possibilidade, e tornar-se pai serviu de incentivo nesse processo. “Eu entendi que não sou mais duro”, afirma. “Eu preciso ser duro, perante meu inimigo, perante certas coisas, mas não sou mais o cara rude, duro, hostil. Meu filho me fez um cara que ri toda vez que ele acorda de manhã. Eu já acordo rindo”. Por isso, ele acredita que esse lado pouco explorado precisa ter um pouco mais de espaço para também contribuir com a sua poesia. Pequenos detalhes que mudam as perspectivas.
OFF
“AS MINHAS FRASES NÃO SÃO DE EFEITO, EU TÔ PREOCUPADO COM O EFEITO DA FRASE”.
“Eu dou muito mais risada do que bebo hoje em dia, eu sou muito mais feliz do que quando ficava drogado. Eu sou muito mais amoroso e romântico do que um negociador das esquinas. São coisas que passaram na minha vida, mas eu acho que só quem quer ouvir isso é quem entende que esse arquétipo é o arquétipo preto que vende, e eu não sei se eu quero que essas pessoas sejam as consumidoras do meu trabalho”.
É assim que Zud pretende expandir os limites do seu rap. “Le Fauve” traz essa leveza, suavidade e a liberdade poética que permite que ele olhe mais além do horizonte, mesmo que parte do seu público não entenda seus objetivos.
“O trabalho do artista não é reclamar do público. O trabalho do artista é cativar o público, seja ele qual for: 10 mil, 10, velho, mulheres, homens, gays, pretos, brancos… eu preciso dar jeito de chegar”, diz. “50% do problema de eu não chegar nas pessoas sou eu coloco em cima de mim, obviamente, e esses 50% eu vou sanar. E é isso que eu estou me propondo agora”.
ROMANCE PARA ADULTOS
As músicas românticas nem sempre foram tratadas com seriedade no rap. Sempre tinha uma ou outra música com esse tipo de narrativa, mas ficava em terceiro plano. As mulheres ajudaram a mudar esse status. Hoje quase todos os raps e, principalmente, os traps são guiados pelo tema.
Nem sempre é amor. Também não se resume a putaria apenas. Ainda assim, a maioria segue quase sempre o mesmo roteiro em que o homem é o protagonista. É igual nas conversas de botecos e barbearias, onde cada um quer defender a sua masculinidade (honra) relatando coisas que na realidade seria impossível fazer. Evidentemente “Le Fauve” não é o único no rap BR a abordar o assunto de uma maneira mais realista, adulta, que traga uma identificação com vivências do dia a dia. Não é genérico, e muito menos expansivo. Relata momentos que geram identificação.
Mesmo assim, Zudizilla diz que não retrata coisas, cria imagens com coisas que estão acontecendo no mundo. Nada segue uma cronologia. É atemporal porque possui relatos que aconteceram ontem, que podem acontecer amanhã, que não aconteceram, que aconteceram hoje. “Esse é o meu material de pesquisa, tá vivo. A experiência vivida é o que faz, é o que dá certo, dá força, dá potência pro meu trabalho… discorrer sobre esses assuntos foi muito fácil pra”. Um exemplo disso está na introdução que abre o EP com o áudio de um amigo do rapper.
“Ele falou que eu ia casar com a preta dele e tal, e eu, porra, muito massa, achei mó… sutil. Mas quando tu tira aquilo do lugar de comum, de ordinário, de banal… e coloca na intro, as palavras se tornam muito fortes”, afirma*. “Quando ele diz ‘esse ano se Deus quiser vou casar com a minha preta’, é algo que não deveria impactar, mas impacta quando tu tira desse lugar de comum, e é muito esse meu ponto de observação. Tem briga com a minha esposa que virou música. Tem muita coisa ali que aconteceu que é coisa ordinária, rotineira, mas eu coloquei dentro desse processo de criatividade sempre buscando uma linha guia”.
Já tinha um tempo que Zud queria fazer um trabalho intitulado Le Fauve, que em francês significa ‘a fera’, porque é apreciador do fauvismo. Esse movimento artístico de vanguarda iniciado na França em 1901 tem como suas principais características o uso de cores puras e intensas, simplicidade nas formas e o cotidiano como mote.
Colocá-lo em prática foi necessário para que ele desse uma pausa naquilo que estava levando. Neste caso, o objetivo era apresentar algo que não tivesse toda a pompa dos anteriores. Viu também que tinha uma brecha para entrar. “Sempre escuto sons que partem dessa narrativa juvenil, muito adolescente, assim, muito partindo de uma outra estética, tá ligado?”, indaga. “E eu queria falar disso, mas também queria trazer pessoas mais maduras para esse tipo de conversa, para esse tipo de diálogo, sinto muita falta disso inclusive”. Inquieto que é, foi lá e fez o que tinha que ser feito.
“Como eu queria muito fazer um trabalho que fosse essa vírgula na minha carreira, que fosse uma ponte da construção daquilo que eu entendo enquanto história artística, veio muito a calhar porque tinha algumas amigas minhas que me pediam, tipo: ‘pô, tem que fazer um trampo de love song’’. E aí acho que nesse momento foi muito útil, justamente por eu estar vindo de uma trilogia que praticamente fala da mesma coisa, e abrir essa janela foi extremamente necessário e útil”.
Algumas dessas love songs eram para entrar nos álbuns anteriores, porém o “perfeccionismo zudizílico” não permitiu que mais de uma estivesse presente em cada um dos discos.
“Eu não queria colocar duas no mesmo rolé”, confirma. “Aí, elas acabaram ficando na gaveta, e eu tive a possibilidade de tirar agora. Isso para mim foi um alívio gigante”.
Para não perder a oportunidade de conseguir um spoiler, quis saber dele se teria a possibilidade de um “Le Fauve” 2. Ele não confirmou nem negou. Só disse que poderia ser filho único, porém, nada certo. Apenas deixou evidenciado que a meta inicial era fazer com que esse não tivesse a ver com o próximo, mas que já fosse dentro da dinâmica e da estética do que está pensando em fazer. “Queria que apontasse para isso e, mais do que tudo, eu bati a tecla nas produções, nos instrumentais”. Para ele, a narrativa e a poética são satélites que circundam esse universo inteiro, mas o universo está pautado muito mais na questão da proposição enquanto produtor, daquilo que gosta de ouvir, e do que não escuta muito. Assim, esse projeto também é uma ponte para que suas produções ganhem mais destaque.
“Eu preciso colocar, acima de tudo, o meu lado o produtor mais em voga. As pessoas precisam saber que eu produzo também”, enfatiza. “Aí, parece que tudo se alinhou, tá ligado, Tudo veio a chalhar: o potencial criativo, a ideia, o EP. É aquele papo de treinador de futebol: quem se escala é o jogador, tá ligado? Tipo, quem se lançou foi o Le Fauve… o EP mesmo se lançou”.
O ZUDIZILLA PRODUTOR
A fera, que intitula o EP, é o próprio Zudizilla. Toda a arquitetura e o acabamento é assinado por ele, e apesar de não ter colocado o mesmo peso no desenvolvimento como fez nos outros discos, concorda quando dizem que qualitativamente está num patamar até acima da maioria dos álbuns de 2024, e provavelmente dos que virão em 2025. “Tudo é meu, cara. A foto analógica da capa é minha. Os vídeos foram decupados por mim. Todos os visualizers fui eu quem roteirizou”.Tudo ficou na mão dele por um motivo importante: “eu quero terminar essa vida como produtor”, afirma. “Tipo, eu vou continuar MC até umas horas porque eu sou MC, mas eu quero terminar minha vida produtor”. Porém, sabe que precisa de outros olhares que o ajudem a expandir tecnicamente a mensagem da sua arte.
Por essa e outras, chamou novamente o 808 Luke, “porque ele consegue dar uma modernizada na sonoridade das coisas”. Também convidou Beatriz (B.Artz), que considera ser uma das maiores produtoras no Brasil, colocando ao lado de Yuri Rio Branco e Nave. “Eu acho ela muito criativa, genial. Talvez por ser mulher, talvez por ser preta, não esteja ganhando o espaço que merece”. Também colaboraram Dcazz e Soul Diggin. “A primeira vez que cheguei aqui em São Paulo, o DJ Soares (Soul Diggin) já mandou um beat pra eu fazer um trampo. Ele é sinistro”, diz, complementando que os beats de sua autoria foram feitos no estúdio que montou em casa.
“Infelizmente, eu não tenho grana, entendeu? Se tivesse grana, eu acho que as coisas teriam um alcance, teriam um olhar mais carinhoso de quem trabalha com a música, teriam um vislumbre muito maior. Eu sou muito ruim de network também, então é difícil eu conseguir convencer as pessoas, tá ligado? Mas, mano, eu sei que o que eu tô fazendo… “Le Fauve” retoma um lugar pra mim que é muito honesto, tá ligado?”
Uma das reivindicações dele é o lugar dos pretos na produção. Concordamos que os indicados a melhor produtor nas principais premiações do Brasil são em sua maioria (senão todos) brancos. Zud acredita que isso tem a ver com o poder aquisitivo e o acesso. Agora que tem estrutura e seus equipamentos quer botar a cara, e não é com intenção de ser o melhor. “Eu quero ser um produtor para que venha um produtor preto melhor que eu, depois mais dois pretos melhores do que ele, depois mais quatro, e que a gente se multiplique, tá ligado?”, explica. Um exemplo dessa falta de reconhecimento de produtores negros, principalmente de rap, é o JXNV$, produtor responsável de vários sons do BK, não estar entre os indicados. “É feião ver essas premiações… e a gente não quer entrar por cota, tá ligado? Mas, porra, produtor do ano e não tá o JXNV$, tá ligado? Tipo, pô, O BK faz mais da metade das produções com ele, e o cara não tá em um melhor produtor do ano, tá ligado?” Apesar de achar estranho, ele diz que não é a pessoa que vai ficar reclamando. “Eu reclamo trabalhando”.
Trabalhador da arte que nunca se contenta com o óbvio, Zudizilla é referência para quem está um pouco acima da margem. Inevitavelmente, voltamos a falar dos meandros mercadológicos.
“Depois que você começa a entender como é que funciona as dinâmicas de gravadora, de selo, de mercado, observa que uma galera realmente limita sua criatividade e seu potencial artístico pelo bem-estar financeiro para ajudar duas, três gerações da família para frente. O que é honesto pra caralho, tá ligado? Porém, mano, como eu tô nesse lugar… de agente artístico, eu prefiro fazer do que esperar. Não espero, não consigo esperar os caras fazerem um bagulho que eu sei que está faltando”.
Ele conclui que talvez seja o tipo de artista fonte, referência. Não que ganhar dinheiro não faça parte dos planos. No entanto, o seu interesse maior é fazer arte. “Me interessa muito mais criar, me interessa muito mais errar, me interessa muito mais fazer arte, tá ligado? Obviamente, eu quero ser rico pra caralho. Eu digo: meu Deus do céu, eu preciso de dinheiro, tenho um filho que come pra caralho, mas preciso fazer arte, cara, eu não consigo viver reproduzindo foto. Não consigo viver reproduzindo som”. Zudizilla reafirma que é de fato artista, e no sentido mais trágico que ser artista pode significar. “Eu sou triste por ser artista”, enfatiza. “Eu não sou feliz sendo artista, eu sou feliz com minha arte, mas eu não sou o cara mais feliz do mundo sendo artista. Meu sonho era ser caixa de farmácia”. Felizmente, para os amantes do rap, esse plano não deu certo.