A chuva ensaiava uma chegada quando a 3ª Virada Afro-Cultural de Campinas, no interior de São Paulo, teve início por volta das 11h de sábado, 02. Não se sabe se foi de maneira pensada ou despretensiosa, a abordagem feita pelo Oriki tinha Exú como guia. “Exú é caminho, é abertura, é o que come primeiro e o que está na frente”, disse Ainá Ayofemi (Ayo Bento), uma das integrantes do grupo que fez o abre alas. “Quando a gente percebeu que iríamos abrir, falamos: Exú. Então, foi um sentimento de muita honra, muito prazer, muita emoção estar nesse palco”.
Mantendo a tradição oral e fazendo referência aos ancestrais, que foram lembrados naquele dia (Finados), como é feito na cultura Iorubá, Ayo, Renata Oliveira, Kaetê e Nicolas Villas Boas fizeram um espetáculo com ritos de candomblé e umbanda, somados à teatro, música e dança.
“A gente trabalha com ritual. Na realidade, nosso espetáculo vem a partir dos griots, que são contadoras e contadores de história africanas”, refletem. “Para nossa espiritualidade, para a espiritualidade de matriz afro-indígena, não tem muito essa divisão do que é o rito, o que é espiritualidade, o que é dança, o que é música, o que é teatro. É o axé que a gente vive no dia a dia, o axé que a gente reverencia. Quando a gente pensou nesse espetáculo, a gente pensou em abrir com o Exú e fechar com Oxalá”.
Essa junção de práticas e artes enraizadas na cultura afro-brasileira serviu de fio condutor para tudo que viria nas horas seguintes. Também contemplou a proposta de reunir as mais diferentes manifestações culturais, da música às artes visuais, e fortalecer a economia de pessoas pretas através de uma feira com diversos tipos de produtos. Os 20 artistas, majoritariamente negros, que fizeram parte do cartaz, foram escolhidos por 4 curadores, a partir de um chamamento público que recebeu mais de 300 inscrições. Para alguns, essa foi a primeira oportunidade que tiveram para mostrar o trabalho para o público da cidade. Outros ganharam um incentivo extra para superar as adversidades e voltar a expressar o que está preso na mente.
Um exemplo é a rapper Giovanna Machado, a Giô Art e Music. Por um tempo, ela fez parte da banda A Preta Que Habito mas teve que dar uma pausa na carreira. “Um dos motivos foi a instabilidade financeira, porque ser artista independente é foda, tá ligado?”, observa. “Eu queria viver coisas e construir também, mas essas brisas estavam me parando”. Isso a fez abandonar a música por 3 anos. Porém, esse tempo de pausa não a fez perder as habilidades com o microfone na mão. Nos raps, ela compartilha experiências que vivencia e observa. Tem personalidade, rimas consistentes e conscientes. Não perde a cadência, seja rimando no trap, R&B ou boom bap.
Apesar de fazer música desde a infância, nenhuma delas pode ser ouvida no streaming. Ainda está trabalhando na produção. Estar ali com seus amigos apoiando deu a resposta que procurava.
“Estar com conhecidos e com pessoas que não me conhecem ainda, e ter essa oportunidade de voltar a tocar depois de todo esse tempo num evento grande como esse, é tão significativo”, ressalta. “A Virada Afro-Cultural é exatamente sobre o que eu falo, exatamente sobre o que eu trago nas minhas músicas. É muito gratificante também pela galera que ficou lá do meu lado”.
Artes visuais, resistência e reflexão
Enquanto diferentes ritmos, poesias, crônicas, protestos, beats e batuques se alternavam no palco com Mentores, Realidade Criminal, a cantora trans Sol Cartola, que impactou com sua vivacidade, e Naná Cosme com uma alegria dançante, ao cantar músicas populares afro-brasileiras conhecidas e outras de sua própria autoria, com os pés no chão histórico da Estação Cultura, o grafiteiro Everaldo Luiz produzia um painel com o rosto de um homem negro, de olhar marcante, tendo uma flor de Oxum, um lírio, ao lado do olho direito e uma favela ao fundo.
A estética do artista é conhecida por mesclar o preto com o amarelo, sendo essa segunda cor inserida no rosto ou nos olhos. Ao lado dele estava Bela Aguiar, que na sua tela, feita com um tecido cor de rosa preso por fios de metal em quatro pedaços de madeira rústica, fazia traços futurísticos que deu vida a uma mulher negra com pinturas no corpo típicas de alguma tribo da África, acompanhada de um atabaque com um vaso de planta em cima e uma ovelha, sua assinatura.
Essa fusão de movimentos inspira e instiga. Em alguns momentos, o som não colabora. A qualidade atrapalha a apreciação. Mas todos parecem comprometidos em fazer com que a mensagem chegue ao receptor sem ruídos, para o fazer dançar e/ou refletir. O Jovem Urso une as duas coisas, chamando atenção para a saúde mental dos jovens negros. Ele começou cantando na igreja, mas por influência familiar enveredou para o rap. Aos 7 anos ganhou seu primeiro violão. A partir dali, a música virou uma amiga. “Cara, ela me libertou de muitas formas. Eu sou uma pessoa que, como eu disse ali, não era pra estar aqui”. O rapper faz a afirmação porque quase foi levado por crises de depressão. A arte o salvou várias vezes.
“É como se fosse a minha pele, se eu arrancar, vai doer, mas ela vai nascer de novo”, observa. “Eu não consigo me desvincular da arte. Assim como todos os outros artistas, eu já tentei desvincular várias vezes, mas ela sempre volta. E ela sempre volta com essa potência. Essa potência de autocuidado. De estar doendo, vou rimar. Vou mudar, vou fazer acontecer alguma coisa, por mim, pela minha família, pra minha sobrevivência, tá ligado? E pra inspirar outras pessoas”.
O sonho do MC é ter uma ONG, igual a que o salvou um dia, cuidando de crianças e adolescentes que sofreram abuso sexual. Mais uma vítima, ele foi cuidado e apresentado à cultura hip-hop. “Aí, só foi libertação”. Para muitos artistas, a dor gera história. Não que uma pessoa que não tenha dor também não tenha o que dizer. “Eu acho que rimando ou cantando o que eu tô sentindo, externo as dores, as alegrias e todo aquele turbilhão. Eu acredito que gera uma identificação com as outras pessoas, tipo: “Pô, eu já passei por isso”; “Pô, também sou da favela”; “Pô, também sou preto. “Pô, não tenho dinheiro também, mas tô tentando”.
A cantora Odara compartilha da mesma visão. Ela fez a estreia do show Odara Canta Música Preta Brasileira, cantando Elza Soares, Tim Maia, Liniker. “Cantar apenas pra mim não é suficiente. Aqui a gente consegue conhecer outros artistas, e isso é muito legal”, diz ela. “É uma honra poder trazer nossa ancestralidade, de como a gente quer contribuir com a causa”. Sorridente, e ainda extasiada pela apresentação que fez, Odara ressalta que mesmo sendo uma celebração, também é um momento de luta, de expor as necessidades, os problemas que cada um enfrenta no dia a dia, e de como o racismo afeta cada um, principalmente em novembro ( o Mês da Consciência Negra). “A música é uma forma de protesto, uma forma de a gente entregar mensagem também. a música, eu falo sem medo de exagerar, que salvou a minha vida. E maior ainda, quando eu conheci as vozes que pareciam com a minha, tudo fez sentido”.
Rincon Sapiência
Amor, negritude, superação, união e resistência sintetizam o que foi o dia 1 da Virada Afro-Cultural de Campinas. Para amarrar tudo, Rincon Sapiência ainda meteu dança. A coisa estava de fato preta, e muito boa. Na altura, o som ficou alinhado. Quem estava disperso, se juntou. Na noite chuvosa e fria, o calor tomou conta. Quando “Galanga Livre” começou, Rincon só foi. Não parou um único minuto. Toda essa disposição, contagiou. As pessoas que não dançaram ao menos tentaram. Algumas – que não tiveram a oportunidade de ver o show dele em outra ocasião – foram pegas de surpresa com a polivalência da performance, indo do rap ao afrobeats, passando pelo trap e pagodão baiano. “Ponta de Lança” foi o ponto alto.
Na troca de energias com os fãs, Rincon disse que voltaria para São Paulo renovado. Reafirmou a mesma coisa novamente quando conversamos depois dele tirar foto com todos e todas que se prontificaram a esperar um tempo na longa fila.
“Eu tenho essa proposta no meu som de trazer a pesquisa da sonoridade, do continente africano”, disse. “O público era na sua gigantesca maioria preto também. Então, tudo deu muito certo. Tudo que eu propus, que eu organizei pra entregar pras pessoas era fazer da melhor forma. Eu vou voltar pra São Paulo muito feliz. Eu sou um artista de rap, mas não faço um rap tão habitual em relação a outros artistas, então a gente paga um preço por ter uma originalidade, uma assinatura, mas são situações como essa, como esse festival, por exemplo, que mostra que é um caminho que eu preciso continuar e que tem pessoas que querem consumir isso”.
Sempre nadando contra a maré, o rapper também investe em outros artistas. Seguindo a proposta do festival, ele apresentou dois MC ‘s do seu selo, MGoma: Fr7ança, e Bren9ve. Os dois mantiveram a mesma temperatura que Sapiência deixou. A resposta da plateia foi positiva. “Eu sou a prova viva de que o trabalho precisa ser maturado, para alcançar e criar a sua autonomia”, fala sobre o desenvolvimento artístico, enfatizando que a maturação tem que ser feita no dia a dia. “Eles são muito versáteis. Então, dado o momento, a gente vai precisar entender qual é o lado deles que as pessoas mais recebem, isso a gente está descobrindo”. Por também ser versátil, o “patrão” afirma que existe a necessidade de colocar eles na pista para sentir como as pessoas recebem também. “A gente sabendo que é possível encontrar uma forma, mas ainda estamos no processo”.
Ao final, o MC revela que seu próximo álbum pode chegar nos primeiros meses de 2025. “Está na fase final mesmo, fechando a tampa. Vamos esperar virar o ano, passar aquela energia toda do carnaval, aquele recesso todo, e assim que passar o processo todo, a gente já está marchando e jogando essa bomba na rua”.