Assim como a água, Thiago Elniño encontrou seu caminho. E obviamente isso não aconteceu exatamente agora. O desenvolvimento é constante. É possível observar essa evolução se compararmos a diferença entre Pedras, Flechas, Lanças, Espadas e Espelhos (2019) e “Correnteza”. Levado na maioria das vezes pelas águas sagradas do afrobeat, o MC está mais ameno. Até quando é contundente, ele consegue passar sua visão com uma certa leveza. Vai conforme o fluxo: algumas vezes suave e outras bem tensas.
A fé, novamente, serve de guia. E essa característica é interessante, porque Elniño sempre tem a sua religiosidade como ponto central. A partir dela, ele aborda diversas questões que [infelizmente] estão em voga atualmente. Nos quase 43 minutos [o dobro do que tem sido feito pela maioria], ele fala de afeto, de suas crenças, dá o papo para quem acha que o candomblé é apenas hype e não o leva sério, vai para o combate (com razão) contra os falsos cristãos, levanta questões relacionadas ao caos que tomou conta do Brasil, da constante perseguição contra a população preta e periférica, da constante luta anti-racista.
Como um bom pedagogo, ele escolhe muito bem as palavras. Não deixa pontos soltos. Diz verdades que precisam ser absorvidas sem nenhum acompanhamento. Causam desconforto em alguns [como me causou na primeira audição de “Baque”, quando trata do cristianismo com repulsa. Mas nas demais vezes que ouvi, compreendi qual tipo de cristianismo ele se refere, não é o que prega o amor e união, e sim o que fechou com o atual presidente] e representa a voz de muitos outros. Tem muita paixão. Afrobrasilidade. É autêntico. Ancestral. Poético. Ao pegar as ondas, dificilmente virá a vontade de sair da água. O caminho não tem volta. A navegação vicia. O enjoo passa longe. Em vários momentos, o afrobeat se encontra com o rap mais clássico, o jazz, o samba, a batucada dos terreiros. Essas fusões criam uma musicalidade adocicada bem temperada com as melhores especiarias. Foge do tradicional, refletindo muito bem a diversa e bela cultura brasileira, que precisa ser conhecida e melhor explorada pelos rappers tupiniquim – que insistem em ser a cópia da cópia do que é feito em várias partes do mundo.
“Quando a gente sair daqui, eu não quero ter que lembrar dos dias que lágrimas regaram dores que o tempo não vai conseguir apagar”, diz Zé Manoel nos versos de Dia de Saída”.
“Parece que a gente tá vivendo um mundo que teve um corte brusco, um mundo novo. Mas na verdade, é a continuidade de ações que vêm sucateando nossas vidas há séculos”, diz. “Alguns assuntos estavam ganhando um novo olhar e devemos continuar nesse caminho, a pandemia não suspendeu os problemas já existentes, ela potencializou. Independente da conjuntura e do momento, o afeto e o amor entre nosso povo é uma inteligência, uma proteção”.
De uma forma bem sincera (e até sentimental), Thiago Elniño consegue fazer uma radiografia certeira do Brasil nesse momento crítico – e antes mesmo dele se iniciar. Faz um registro com fatos, contextualiza, crítica e aponta prováveis soluções. Pode ser que num futuro, essa obra arquitetada e executada em apenas 3 meses possa servir para estudos relacionados a esse período pandêmico e também a toda essa “problemática” do racismo estrutural que invisibiliza e persegue religiões de matriz africana, mata e criminaliza negros todos os dias. Por outro lado, serve também de alento e dá esperança para quem está cansado de apanhar. Serve como antídoto para dar uma aliviada nas dores incessantes, que parecem não ter fim. Mais que necessário, “Correnteza” é essencial.
“Esse é um momento onde temos poucas perspectivas enquanto humanidade. Ainda assim, você tem que entender que as coisas podem dar errado dando certo, ou dando o menos errado possível, e a única opção que a gente tem é seguir em frente tentando estar o melhor que pudermos”.
*Foto: Ana Beatriz