Fazia pouco tempo que o single “Indispensável” tinha ganhado o mundo digital. Nesse mesmo ambiente, através do Zoom, encontro Souto MC. Apesar da euforia, ela está tranquila. Diz que a ansiedade já fez parte desses momentos de estreia, mas que agora não fica tão pilhada quanto antes. O mesmo aconteceu na sua participação no Festival Futuro, que abriu alas para a posse do presidente Lula.
“Foi uma parada de sentir o baque da responsabilidade, tá ligado!? De tá ali, fazendo o que eu estava fazendo, falando do que eu estava falando… isso me dá uma assustada às vezes… mas aí, é pensar que tudo é construção, né mano, de tá ali cantando como eu canto… teve várias outras minas que fez essa parada acontecer”, diz ela.
Ao longo dos 30 minutos de conversa, Souto também compartilhou detalhes da sua forma de desenvolver seus raps, conquistas e espaços a serem preenchidos. Na sua visão, o rap tem tudo para crescer ainda mais, porém precisa dar oportunidade para mais artistas.
“Eu acho que é isso que a gente tem que ajustar, porque, firmeza, o rap está crescendo, só que e as pessoas que a ajudaram a construir isso quando ninguém botava uma fé, tá ligado!? Onde estão essas pessoas? Estão juntas nesse crescimento? Acho que isso a gente tem que trocar uma ideia, porque não adianta… castelo de areia cai. Se a gente não botar base forte na parada, não sustenta”.
Como estão as correrias do lançamento do single?
Tá bem massa. É… eu tô correndo, completamente desesperada, mas tá rolando. Eu achei que iria ser mais caótico, porque para além do trampo do lançamento, estava rolando várias outras fitas… de show, de outros trampos. Mas consegui conciliar tudo.
Você não soltou naquele dia estabelecido para lançamentos, que é sexta-feira. O seu veio na segunda-feira… foi justamente para fugir dessa inundação de músicas que chegam juntas? Qual foi a estratégia?
No primeiro momento, a gente ia lançar no dia 20, sexta-feira, só que aí rolou o trampo com o Emicida (no Espaço Unimed em São Paulo). Aí, eu não teria tempo nenhum para conseguir dar uma atenção, e estava muito em cima. Então, falei: “não rapaziada, vou soltar na segunda, e é isso, fé em Deus”. Mas depois foi até uma escolha legal porque é muito saturado de quinta e de sexta, né!?
Geral se programa para colocar tudo nesses dois dias específicos para seguir aquela onda… você falou com o trampo com o Emicida, mas quero voltar ao primeiro dia do ano que você participou da posse do Lula. Como foi fazer parte desse dia histórico com outros nomes do rap?
Puta… foi foda! Foi incrível! Eu cheguei no dia 31 (o pessoal já estava lá), e aí na passagem de som (no ensaio) foi que a ficha foi caindo. Aí, ano novo, euforia total… esqueci. Eu só lembrei às 10 horas da manhã do dia primeiro, porque a gente começou a se arrumar pra posse, de ir lá e ver o “homem” subir a rampa e tal. No primeiro momento, eu achei que a gente ia direto pro show. E assim, foi muito foda. Um momento de entender mesmo onde que a minha música chega e como o hip hop de fato me educou politicamente, e eu me sinto com a consciência tranquila porque foi nesse lugar que o hip hop me colocou… pra cantar numa das posses presidenciais mais históricas do mundo (de mim dos maiores líderes do mundo), tá ligado!? Depois de tudo que nós passamos nos últimos 4 anos no Brasil, poder estar naquele momento foi incrível. Bateu uma responsabilidade muito foda, mas também… que felicidade estar do lado certo.
Esse momento serviu também como um ponto de partida para a reestruturação da cultura que foi deixada de lado no governo anterior. O envolvimento do rap é muito importante também para o seu fortalecimento dentro do cenário musical brasileiro.
Com certeza! Depois que rolou o show da posse, aí o Lula apareceu e foi um momento muito emocionante. Ele fez um discurso agradecendo todos os artistas que participaram e dizendo o quanto ele ia dar esse valor pra nós e dar uma atenção no que a gente faz. Foi um discurso de valorização da cultura e dos artistas que estavam ali. Foi uma parada muito emocionante, porque foram 4 anos se sentindo um nada, tá ligado!? A gente já vive na margem, mas nesse período fomos colocados na margem da margem. E aí, você vê, no dia da posse, ele falando tudo aquilo pra gente… foi muito foda. Foi um gás pra começar o ano.
Você também foi uma das representantes do rap, das mulheres e das indígenas que estão envolvidas no hip hop… e estando naquele momento, passou um filme de toda sua trajetória e lutas que teve que enfrentar para conquistar seu espaço?
No primeiro momento, na hora de cantar, foi uma parada de sentir o baque da responsabilidade, tá ligado!? De tá ali, fazendo o que eu estava fazendo, falando do que eu estava falando… isso me dá uma assustada às vezes… mas aí, é pensar que tudo é construção, né mano, de tá ali cantando como eu canto… teve várias outras minas que fez essa parada acontecer. Então, eu tento nesse momento fazer a melhor performance do melhor jeito que eu posso fazer pra que de alguma forma, de fato, elas se vejam. E na verdade é muito uma vontade de tentar devolver tudo o que foi dado pra mim. Devolver pra elas de alguma forma, o tanto que foi dado pra mim, enquanto referência, enquanto ensinamento e perspectiva de vida, porque se não fosse isso eu não saberia nem o que iria ser. Então, o lance é entender essa responsabilidade, e pensar: “firmeza, to aqui nesse lugar, é uma conquista foda, então vou tentar devolver e agradecer o que foi dado pra mim”
Indispensável também reflete muito isso. Chega a ser uma auto-afirmação de que você não está disposta a abaixar a cabeça ou aceitar qualquer coisa?
Assim, depois do Ritual, que foi bem na época da pandemia… a gente lançou em dezembro de 2019 e em março de 2020 começou a pandemia, tá ligado!? E nesse período, eu fiquei muito pensativa sobre a minha carreira. Um porque me pegou num lugar de: pô, mano, meu primeiro disco, eu cheio de coisa pra fazer e o barato pega agora! Foda, porque você é obrigado a ficar em casa e lidar com o que você tem ou achava que não tinha, porque começa a aparecer várias coisas… são problema de autoestima e auto-sabotagem. E dentro desse processo, e várias coisas que aconteceram comigo, eu dei uma afastada muito grande do rap, dos meus processos de composição, de ouvir um beat, do meu processo com a música mesmo. Deu uma esfriada muito grande porque eu entrei umas de medo de voltar a fazer música, criar novas expectativas e me frustrar novamente. Então, eu fiquei nesse processo até entender que a música é tudo o que eu tenho. Se eu não fizer isso, não tenho outra coisa pra fazer…. e não é só falando profissionalmente. Falo espiritualmente mesmo… se eu não tiver isso não tenho outra coisa que eu possa fazer, que eu ame mais fazer. E aí, eu comecei a destravar essas paradas na cabeça, comecei a fazer terapia também (que é muito bom) e fui olhando pra minha caminhada, as pessoas que já trabalhei, lugares que consegui alcançar e conquistar, e ver que de fato a minha música é importante. Por mais que o mundo inteiro nos subestime e fale totalmente o contrário do que a gente quer ouvir, alguma pessoa tem que acreditar, e essa pessoa sou eu. Então, eu entrei nessa onda de: “não mano, eu vou trabalhar o máximo o que eu puder, da melhor forma que eu puder, entendendo quem eu sou, entendendo onde eu posso chegar, porque eu tenho certeza que isso vai dar certo”. Eu só estou aqui porque foi nisso que eu me apeguei e deu certo até agora. Depois do bug que deu na cabeça durante a pandemia, as coisas voltaram a ficar normais. Indispensável é sobre isso, e também, pô, 10 anos de caminhada de rap. Já chega de ficar apagando incêndio, de ser tirada… e também entender que tem portas que vão fechar pra nós e portas que a gente não quer nem entrar.
A música foi escrita agora?
Na real não. Ela é do ano passado. A fita foi que eu trombei o Ort1, que é o produtor, e aí a gente tava com essas ideias de fazer um som, que no primeiro momento seria um EP. Mas depois não deu tempo… essa música tem três versões. O Ort ficou que nem um maluco fritando, até que a gente bateu o martelo nessa. Aí, o Renan Pali falou que ia fazer o clipe. Escrevi ela no estúdio… o ano foi passando e a gente pegou ela pra firmar mesmo foi em outubro. No mês seguinte, a gente gravou o vídeo, esperamos a festa passar e soltamos em janeiro.
“O hip hop é uma cultura que tem sua própria história, sua própria autonomia e seus próprios construtores. E se essas pessoas não estão contando essas histórias, fica totalmente caricato e esquisito, que é o que a gente tem visto.”
E como fica a expectativa de gravar e deixar ali guardada pronta pra soltar pro mundo?
Ah, mano. Eu falo pra você que eu já fui mais encucada com isso aí. Só que eu entendi que não dá mais pra lançar só assim. Tem que ter um planejamento das coisas. Sua Cho que chega muito mais quando a gente consegue planejar tudo direitinho, consegue criar expectativa nas pessoas para que elas de fato ouçam. Por que assim: de música por música lançada, devem sair 300 músicas por dia. Mas eu gosto do planejamento das coisas, porque a gente consegue ter uma base melhor de onde a gente consegue chegar, de onde não, consegue ter mais calma e trabalhar melhor a ansiedade. Falando do lugar de uma pessoa que gravou e depois fez 300 milhões de coisas, foi até suave.
Nesse frenesi industrial da música, as pessoas sempre estão querendo novidades toda semana. Com certeza daqui a pouco vão perguntar quando vai sair o próximo som.
Com certeza, absoluta. As pessoas imaginam que é algo rápido e fácil. Para lançar uma música gasta-se muito dinheiro, tempo, trampo… é muita coisa pra fazer em volta de um lançamento, tá ligado!? E é isso, eu entendi que não sei se quero ficar lançando uma música atrás da outra sem conseguir ter uma perspectiva de como as pessoas estão acompanhando esses lançamentos. Além do que, fazer música não é fritar pastel. Amo pastel, mas não é só colocar ali, esquentar e pronto. Não é um miojo. Então, eu também tenho aprendido a respeitar esse meu tempo criativo pra que eu consiga expandir meus horizontes musicais, sair de uma caixinha, estudar outras sonoridades pra conseguir lançar umas paradas diferentes que não sejam tão quadradas e eu fique girando lâmpada. Entendo que tem toda essa demanda, mas estou indo pelas rotas paralelas, fazendo do meu jeitinho, sendo estratégica.
De que forma suas composições são feitas?
Então, mano… durante um tempo eu ficava travada pensando: “não, mano, a inspiração vai chegar, tenho certeza absoluta”. Aí, ficava de madrugada acordada esperando a inspiração chegar e nada. Só que aí, eu entendi como funciona o meu método. Eu pego pra escrever como se fosse uma encomenda, tá ligado!? Tipo: tem tal rima pra você fazer, tem que entregar tal dia. Assim, eu ponho esses prazos pra sentar e escrever. Eu tento pensar em algum tema central que eu vou ficar ali em volta. Indispensável foi um processo diferente. Eu pouquíssimas vezes, pra não dizer nunca, eu escrevia em estúdio. Só que o que rolou… como eu fiquei muito tempo trabalhando em casa, com outras coisas, a criatividade não estava mais batendo em casa. Aí, precisava de outro lugar pra ver se conseguisse escrever como se fosse um escritório. Falei pro Ort que estava indo pra lá sem nada. Fui pra testar e rolou. Por ser novo, confesso que fiquei insegura. Mas vamos ver como vai ser nos próximos. Eu vou testando fórmulas pra ver como me sinto melhor cada uma.
Nos últimos anos o rap tem conquistado grandes espaços, dentro do mercado da música, na TV e nos festivais. Estando dentro, qual sua visão sobre essa ascensão? As oportunidades estão abertas para todos?
Aberto pra todos é foda…
Você pensou um pouco pra responder…
Mano, eu acredito que vai continuar crescendo muito e vai se tornar um gênero e um movimento muito forte aqui no Brasil, mais do que já é, em questão de alcance. Só que ainda tem vários pontos que a gente precisa ajustar. Quando você pergunta, será que está aberto pra todos… eu do fundo do meu coração torço pra que seja, principalmente pra pessoas que eu vejo que são tão talentosas e comprometidas com o rap e com o hip hop a tanto tempo, mas não tem oportunidade. E aí a gente vai questionar porque não tem essa oportunidade ou tentar ver no contexto, a gente esbarra num lugar que é novo pra gente, pelo menos pra mim. Por exemplo, a questão do contato, da grana, do Business, do knowhow, do empresário… tá ligado!? Eu acho que é isso que a gente tem que ajustar, porque firmeza o rap está crescendo, só que e as pessoas que a ajudaram a construir isso quando ninguém botava uma fé, tá ligado!? Onde estão essas pessoas? Estão juntas nesse crescimento? Acho que isso a gente tem que trocar uma ideia, porque não adianta… castelo de areia cai. Se a gente não botar base forte na parada, não sustenta. Hoje a gente tem a Negra Li na abertura da novela das sete, a Drika Barbosa também está com música na novela… então, eu não acho justo que as pessoas que construíram tudo isso ser possível não tenham acesso aos frutos agora.
Até mesmo nos festivais específicos de rap que tem um line up muito igual e quase sempre sem mulheres, sem pessoas da comunidade LGBTQI+… e não é uma coisa de público, porque existe…
… não é uma questão de público, mas sim de quem está fazendo. Firmeza, vários festivais aí, mas quem faz esses festivais? É uma rapaziada que tem algum contato com o hip hop? Tem alguém do hip hop nessa curadoria pra pensar? Esses são os pontos. Não adianta fantasiar as pessoas de hip hop (esse foi até um tweet que eu vi, mas nõa vou lembrar o nome). O hip hop é uma cultura que tem sua própria história, sua própria autonomia e seus próprios construtores. E se essas pessoas não estão contando essas histórias, fica totalmente caricato e esquisito, que é o que a gente tem visto. E aí mano, como a gente vai ajustar isso?
Falta envolvimento de quem está envolvido, né!?
Totalmente.
Falando sobre futuro… o seu primeiro (e último disco) é de 2019, e aí tem previsão ou possibilidade de algum trabalho mais completo para 2023?
Ó, a ideia do disco novo está pairando sobre nós. Só, que, mano, fazer um disco é um bagulho de mil grau, né!? Eu quero muito, o projeto é que seja um álbum, mas pode ser que vire um EP. Estamos estudando para fazer isso acontecer de alguma forma. Mas vai ter muita música nova, diferente… eu quero tanto experimentar comigo mesma e com o público outras facetas do meu som. Eu gosto muito de outros sons, além do rap. Eu gosto e vivo muitos universos além do universo, e eu quero trazer isso para o meu som mais nitidamente com sonoridades diferentes. Tem bastante coisa nova que até vai ser surpresa pra mim.
E essa relação com a galera da Laboratório Fantasma?
Pô, tá da hora demais. A rapaziada da Lap é um pessoal que sempre me inspirou muito, tá ligado!? Então, poder trampar com eles hoje é uma honra pra mim. Eu sempre aprendo muito com todo mundo, e tem sido uma vivência da hora. Eu tô amando. Vamos ver os próximos capítulos desse romance.