Era terça-feira, 23 de outubro de 2018. Por conta da prisão de Lula, Fernando Haddad assumiu a candidatura à presidência do Brasil contra Jair Bolsonaro. No ato de apoio ao presidenciável da esquerda, realizado nos Arcos da Lapa, no Rio de Janeiro, Mano Brown foi convidado a falar. Ao lado dele também estavam a candidata a vice, Manuela D’Ávilla (PCdoB), Chico Buarque e Caetano Veloso. Quando pegou o microfone, ele alertou: “Eu não gosto do clima de festa. A cegueira que atinge lá atinge nós também. E isso é perigoso”. Na sequência, falou o que o alto escalão do Partido dos Trabalhadores (PT) não queria ouvir.
“Se nós somos o Partido dos Trabalhadores, o partido do povo, nós temos que entender o que o povo quer. Se não sabe, volta para a base e vai procurar saber […] Não sou pessimista, sou realista. Eu não consigo acreditar que pessoas que me tratavam com tanto carinho. Pessoas que me respeitavam, me amavam, que me serviam o café de manhã, que lavava meu carro, que atendiam meu filho no hosptal se transformara em monstros. Eu não posso acreditar nisso. Eu não posso acreditar que essas pessoas são tão más assim”.
O alerta foi dado, mas a importância dada foi mínima. Bolsonaro ganhou aquela eleição. Veio um desgoverno de quatro anos. Lula foi liberto. Ganhou as eleições seguintes, de 2023. Porém, a direita extremista continuou crescendo. As eleições municipais de 2024 deram uma amostra clara desse levante direitista que tem tomado o mundo de assalto. A BBC Brasil observa que “entre os grandes vencedores destas eleições estão: o Centrão, a direita e centro-direita, que juntos, vão comandar a maior parte das prefeituras do Brasil”. No seu blog, a jornalista de política Andréia Sadi escreveu (enquanto a votação acontecia) que “independentemente dos resultados do segundo turno, uma coisa já dá para cravar: não falta ao PT um diagnóstico. Falta às esquerdas um plano”.
Nesse “afastamento” do principal partido da esquerda brasileira do seu alicerce, outros setores que dialogavam com essa parcela da população também subiram no bonde (mas não só isso, é necessário considerar a máquina e o dinheiro investido pelos adversários, somado a igrejas e pastores que estão espalhadas pelas periferias. Não é algo simples). O rap foi um deles. Aqui não vou colocar na conta do hip hop porque o elemento que “mais tem recursos” e voz ativa (literalmente) é o musical. Também se faz necessário considerar que o rap nacional desde o dia 1 esteve ligado à política, tanto social quanto partidária, tendo rappers ligados a partidos políticos, em cargos comissionados em prefeituras de diversas cidades do país e outros se candidatando – em 2008 foram mais de 30.
Em 1992, a Secretaria Municipal de Educação, na gestão da prefeita Luiza Erundina, criou o projeto “Rapensando a Educação” para usar o hip hop como disciplina de conscientização social. Os temas discutidos eram aqueles vivenciados pelas pessoas que moravam na periferia: violência policial, racismo, miséria, tráfico de drogas. Por falar a linguagem de quem ouvia, a proposta foi muito bem recebida pela comunidade. Mas não decolou nos anos seguintes. (Vi o potencial desse tipo de ação em uma batalha de rima que participei em 2024 dentro de uma escola estadual, em Campinas)
Com o passar do tempo, o rap saiu do status de música marginalizada, de bandido, e se tornou uma das mais consumidas do mundo. Por aqui não foi diferente. O tão almejado sucesso veio. Furou-se uma bolha. Nessa evolução artística e mercadológica, uma pequena parcela de artistas ascenderam financeiramente. Com essas conquistas, os temas e as ideias compartilhadas nas letras também mudaram. Os trabalhos em escolas, ONGs, na rua e casas de cultura também ficaram de lado – não em todos os lugares, mas na maioria, e também não é uma generalização de toda a cena. Existem diversos coletivos no país (como a Construção Nacional do Hip-Hop) passando esse conhecimento para crianças e jovens (o tal trabalho de base). O discurso de que a favela venceu ganhou força, levando em consideração os (poucos) MC’s que conseguiram triplicar o número da conta bancária. Querendo ou não, essa mudança de posicionamento, por parte de uma minoria que tem grande destaque, e também pela mudança de público, acarretou no afastamento do rap da política e questões relacionadas ao social. A crítica ficou em terceiro plano, não que tenha sempre que estar em primeiro. Porém, perdeu fôlego. Não faz mais parte da realidade.
Nos bastidores do Rock In Rio, Marcelo D2 falou sobre a questão. “Tem uma coisa que me incomoda nessa geração que é a ostentação. Acho que é uma armadilha esse papo de que a favela venceu. A favela não venceu, a favela ainda está passando fome, está morrendo de fome. Sem saneamento básico, sem saúde. A gente ainda tem que lutar muito por isso”. As palavras dele não foram bem recebidas por quem defende a meritocracia. Existe uma defesa de que depois de tanto sofrimento, esse é o momento de falar das coisas boas da vida, mesmo que seja de forma utópica. A missão deles é raquear o sistema por dentro. Mas isso não é tão fácil como se imagina.
Nestas eleições municipais, talvez mais importantes que as nacionais porque está relacionada à cidade onde as pessoas vivem, houve abstenções. Subir no palanque não era uma questão. O apoio ao Boulos, por exemplo – o lugar que acompanhei um pouco mais de perto (Campinas, não foi muito diferente. E boa parcela de quem faz parte do hip hop fechou com a gestão), que em São Paulo concorreu com Pablo Marçal e o atual (e reeleito) prefeito Ricardo Nunes, foi bem tímido por parte da comunidade do rap/hip hop que focou apenas nas redes sociais com uma certa distância. Por outro lado há de concordar que é necessário estar ativo sempre, não apenas no ano em que a eleição acontece. Mas depois que Lula ganhou todos ficaram anestesiados achando que as coisas estavam mudando. Quando o efeito passou, a ferida que parecia cicatrizada voltou a doer porque para a população mais pobre quase nada muda, seja em governos de esquerda ou direita. Mudanças tem acontecido, porém a base continua com seus perrengues diários. Seria um erro dizer que não houveram manifestações de apoio, mas fez menos barulho que do outro lado.
Duas das maiores produtoras de funk – e parte de seus artistas, hoje não mais moradores de favelas -, um primo do rap em ideologia, apoiaram os dois candidatos da direita, vestindo literalmente o boné, a camisa e usando todos os seus recursos para amplificar a campanha desses candidatos. Isso mostra que não houve um afastamento total desses movimentos musicais periféricos da política, mas sim uma aproximação daqueles que sempre oprimiram e olharam esses gêneros de forma preconceituosa e criminatória – a repressão e mortes nos bailes funk, fluxos, de São Paulo foi meio que apagado da memória, talvez seja porque esses e essas MCs e empresários não vivenciem mais esses ambientes.
Esse é um fenômeno que precisa ser analisado com atenção, porque a geração atual desconhece os elementos básicos do hip hop e seus princípios (na mesma batalha de rima na escola, percebi esse desconhecimento perguntando, inclusive, para quem estava batalhando). Aquela foto de vários artistas de rap com o presidente Lula em 2004 vira e mexe aparece nas redes, mas poucos sabem o motivo daquele encontro histórico. A maioria daqueles que estavam lá, que capinaram o terreno, não tiveram a oportunidade de construir a casa no espaço que sedimentaram – sendo tratados até como obsoletos. Uma das petições naquele encontro era a “criação de uma comissão com seus representantes (do hip hop) e os do governo, e o uso de prédios públicos desocupados para desenvolverem atividades comunitárias”.
Saber de onde veio não é mais uma questão. Diferente do verso de “Negro Drama”, dos Racionais, (O dinheiro tira um homem da miséria / Mas não pode arrancar de dentro dele a favela) muitos saíram da favela e também decidiram esquece-la. O discurso de que não se envolvem em política, porque não se discute, é uma forma de sair no sapato de questões que podem mudar a realidade da maioria. Não levam em consideração o poder de influência que têm sob quem os acompanha fielmente. A Renata Prado resume bem toda a visão que eu tentei passar aqui. É sobre o funk, mas serve também para o rap e seus sub-gêneros – lembrando que rappers fizeram uma cypher em apoio ao movimento “Vem pra rua”, pedindo o impeachment da presidente Dilma.
“Se tem gente comprando funk, é porque os nossos estão vendendo o movimento. Então, assim, a oferta e demanda existe no mercado da política, e você percebe que os discursos não são discursos que faz sentido ideologicamente com o artista ou com o movimento funk, né? É um discurso comprado. A direita comprou algumas lideranças do movimento funk, e eu posso falar com muita tranquilidade que há mais de 10 anos na política do funk eu nunca vi nenhum artista do funk se posicionando espontaneamente pra defender um candidato de direita. Então, qualquer semelhança não é mera coincidência. Existe um mercado da política, ele tá se aproximando do funk, e a velha política assombra o movimento funk […] é lamentável, mas pra mim não é nada de novo sob o sol”.