“Tudo que eu faço é pra ser clássico”. O verso de Kamau em “Época de Épicos” reflete muito bem o que o álbum “Raciocínio Quebrado”, em que a música está presente, se tornou após duas décadas. Lembro de no meio de 2024 conversar com o jornalista Edu Ribas (Per Raps) sobre o que poderíamos fazer para mostrar – em texto, áudio ou vídeo – a importância desse clássico do rap do Brasil, que foi mixado e masterizado no final de 2004 por Vander Carneiro, no lendário Atelier Studios, e Marcos Eagle (respectivamente), e lançado pela TRAMA em 2005 (por esse motivo existe uma certa dúvida se os 20 anos seriam comemorados em 24 ou 25). Com uma avalanche de compromissos, os planos ficaram na gaveta. Porém, nunca é tarde para reverenciar uma obra que é atemporal.

“Eu sinto que é obrigação nossa reverenciar essa obra e esse artista, um talento geracional que influenciou tanta gente”, observa Ribas. “E não é só sobre influência, pois o Parteum batalhou e ainda batalha muito pelo rap nos bastidores. Fez coletânea para apresentar a cena underground pra um público maior, sempre foi conselheiro de muita gente que encostava pra aprender mais, e criava pontes – seja por suas atitudes como empreendedor da música, passando a visão do mercado para novos artistas, ou como MC mesmo, já que suas rimas são verdadeiras aulas (e taí Raciocínio Quebrado para provar)”. 

Quem compartilha essa mesma visão é o também jornalista e pesquisador musical Danilo Cruz (Oganpazan), que ressalta que “Raciocínio Quebrado é das grandes obras primas do rap nacional”.

“Um disco que 20 anos depois conserva o frescor e o apuro lírico e musical que o Parteum desenvolveu em sua carreira nos anos seguintes”, afirma ele, que é complementado pelo pesquisador, produtor e DJ André Luis, o DJ Deco Groove Aqueilo: “Não sei se tem muita coisa pra falar porque é um discão [risadas]. O jeito dele rimar, as produções, que também mostra a identidade própria, fora o trabalho com o Vander Carneiro no Atelier, que é um cara que meio que definiu a engenharia do rap no Brasil”.

Os anos passaram, mas as ideias ainda fazem sentido e refletem a realidade. Um exemplo é “2.27”, principalmente no verso de Paulo Nápoli [“Muitos gritam revolução mas não sabem nem onde estão / Repetem frases feitas, de efeito, mas de fato / Se formos mais a fundo seu mundo tá limitado”]. Sem dúvida, está no mesmo patamar ou até acima, na qualidade lírica e musical – de produção, mixagem e masterização -, de qualquer outro do rap lançado nos últimos 365 dias .

Na era de ouro do rap nacional, Parteum já estava na vanguarda, começando pelo grupo Mzuri Sana, formado com Secreto e DJ Suissac. Um comentário na plataforma Rate Your Music reflete isso: nas 15 músicas de Raciocínio quebrado, percebe-se congruência com o que melhor se fazia no rap da São Paulo do século XXI, além da influência lírica indo de Elo da Corrente, até os mais recentes, Makalister e Lessa Gustavo”. E diz ainda que “a obra ainda possui semelhanças com alguns beats que Flying Lotus faria posteriormente, para não dizer que apenas ( MF DOOM) dois ou três beberam dessa fonte”.

Todo o envolvimento com o skate, artes, cinema, publicidade [nestes dois, fazendo trilha sonora] e na indústria da música, sendo gerente de produto do selo Hip Hop da TRAMA, nos anos 2000, o elevou ao patamar de “guru alternativo” – mesmo que ele não tenha total conhecimento disso – ou talvez tenha. Seja produzindo, arranjando, fazendo raps, registrando fotos e vídeos, ou passando visões sobre diversos assuntos no seu podcast, ele inspira. Um dos que o acompanha de perto, e o tem como referência, apesar de conhecê-lo pessoalmente, é o produtor Carlos do Complexo.

“Ele age em várias frentes, e consegue fazer muito bem isso”, disse na conversa que tive com ele em junho de 2024. “Vendo de fora, ele trabalha muito bem todas as frentes: faz design, tira foto, tem editora, aí lança as músicas produz. Eu sou um dos órfãos de um álbum dele rimando pra caralho, igual os antigos dele. Mas tipo, eu também nem consigo ser uma pessoa que cobra uma parada dessa porque ele trabalha em vários bagulhos, mano, tipo… é foda!”

Essa abstinência de Carlos – e de quase todo mundo – pode estar no final. Não que Parteum tenha parado. Muito pelo contrário. O repertório dele só cresce. Mas dessa vez a expectativa aumenta porque o que está por vir pode ser o complemento (a continuação ou não) daquele que é considerado um dos álbuns mais relevantes do rap BR. Uma primeira amostra foi dada com o single “Raciocínio Inteiro”. Pode ser que agora ele queira falar o que não teve oportunidade de dizer antes. Não é questão de ter amadurecido porque naquele período o conteúdo lírico tinha substancia para alimentar muitas mentes. Porém, nesse, a forma que interpreta está alguns segundos desacelerada, quase que imperceptível. A cadência tem uma suavidade, é lúcida, mas nas rimas não existe economia no vocabulário.

“Me lembrou aquele trailer de um filme que a gente nem sabia que seria lançado, mas que depois de assistir, não vemos a hora do filme inteiro sair”, ressalta Edu Ribas. “Parteum rima criando imagens, como se dirigisse um filme, e nessa faixa ele chega maduro, dividindo um pouco do que aprendeu esses anos todos, contando sua caminhada, puxando a orelha do inimigo oculto e reivindicando seu lugar de referência no jogo. Tudo isso num beat que, se fecharmos os olhos, a gente tem certeza de que é dele. Não tinha como ser melhor”.

“Depois que essa sacola de poemas for lançada / Pode pegar o rap de volta /Mas cuidado com quem passa a mão na bunda da minha rima / Eu sou nível de cima desde antes”, afirma no segundo verso. Já no refrão diz: “Eu sei muito mais do que pareço saber / Cansei de correr de mim mesmo nessa multidão de espelhos / Planto conselhos, colho meu raciocínio inteiro”.

Apenas por essas aspas é possível ter uma perspectiva do que a mente dele está arquitetando. Quem acha que vai pegar tudo de uma vez se engana. Vai ser necessário ouvir uma duas, três… quantas vezes for necessário. Como diria o outro, esse rap é de adulto. Como sempre faz, ele não desperdiça linhas. Fala de si, dos que desvalorizam o seu trabalho, da indústria, do que observa. Alusões artísticas não faltam. É inteligente, sarcástico, frio. Podemos dizer que é o favorito do seu favorito. Como ressalta Danilo, com Raciocínio Quebrado”, Parteum se tornou “sobretudo um formador de outros MC’s e Beatmakers, que ainda hoje o ouvem como um marco para o Hip-Hop nacional.”

“Eu não preciso do ano inteiro pra lançar uma canção / Mas essa industria dá centavos pra quem faz por vocação / Preste atenção como não me citam / Escondem meus feitos / Repartem meus direitos / Como se eu fosse facilmente passado pra trás”