Quem teve o primeiro contato com OQuadro através de “Preto Sem Açucar” tinha quase certeza que este se tratava do seu primeiro álbum. Porém, antes dele vieram outros dois, “OQuadro” (2012) e “Nêgo Roque”(2017), que são complementados pelo atual. “A quem diga que é uma trilogia, mas uma trilogia natural não pensada. É um disco três que amarra bem o conceito de evolução, de amadurecimento de som, de letra, de tudo. Esse disco veio pra dar fechar as ideias”, diz o produtor e compositor Ricô Santana (ou Bass) por Zoom.
De ilhéus, na Bahia, o grupo formado por Ricô, Nêgo Freeza, Jahgga, Rodrigo Dalua, Rans, Orixá Africano, Mangaio e Jef Rodriguez tem duas décadas de atividades, marcou presença em vários festivais na Inglaterra e Dinamarca (Roskilde), e – por sua originalidade – conquistou a admiração daqueles que seus membros consideram ídolos, sendo a Nação Zumbi um dos principais.
Apesar disso, OQuadro tinha pouca ou quase nenhuma “relevância” (visibilidade) dentro do rap concentrado no eixo Rio-São Paulo.
Talvez o furo dessa bolha tenha acontecido pelo “hackeamento” dos algoritmos, o engajamento orgânico nas redes, a indicação feita por artistas fora dessa base e/ou simples fato dos ouvintes estarem a procura de algo fora dos padrões habituais. Mesmo assim, Ricô afirma que o alcance está longe do ideal, seja pelos temas abordados, a qualidade e a autenticidade musical da obra.
Essa problemática não é uma novidade na música brasileira. No elemento musical do Hip Hop isso fica ainda mais evidente, pois geralmente o que é produzido fora do Sudeste do Brasil fica invisibilizado.
“Acho que foi o melhor que fizemos, em termos de impacto, números, compartilhamentos da galera. Muita gente legal, de referencia falando sobre ele. Mas ainda assim, a nível nacional, acho muito pouco”, observa. “A mídia do Sudeste, até que se diz especializada na questão do rap, é muito preguiçosa e condescendente por ficar sempre em torno dos mesmos. Vai fazer um prêmio do rap nacional, aí tá um do Rio, um de São Paulo, talvez outro de Minas. Então, todo ano é a mesma coisa… Se a galera faz rap na Amazônia ninguém sabe, se a galera faz rap no Pará ninguém sabe… A Bahia ainda consegue furar, porque a Bahia sempre foi vanguarda, sempre foi foda na questão de direcionar a músina do Brasil. Mas é um dos pouco estados que consegue, porque é tão original que a mídia branca sudestina não consegue parar. Continua sendo racista, excludente e não tá nem aí pra quem está fora da bolha”.
Esses questionamentos também são tratados nas letras contundentes, poéticas e realistas de “Preto Sem Açucar”. Pelo título – e a arte da capa assinada por Izolag e ORIXAFRICANO -, a impressão é que o conceito está baseado no café, mas não. É muito mais profundo do que se imagina. Faz um retorno aos tempos obscuros da escravidão para mostrar as consequências causadas pela ganância de quem detinha o poder da terra e enriqueceu com trabalho escravo, tendo como principal commoditie a cana-de-açúcar.
Já os pretos, responsáveis por colher a planta nos canaviais, não tiveram o prazer da doçura do açúcar. Só sentiram o sabor da marginalidade, miséria e o abandono.
“Eles trabalharam, mas não conseguiram obter nada com esse trabalho. A partir disso, levantamos vários tipos de discussões, até pela questão alimentar, principalmente na população negra que é a que mais sofre de diabetes, porque em África não tem tanto desse açúcar branco, mega refinado e industrializado”.
Após vislumbrarem a ideia principal, os MC’s, beatmakers e instrumentistas começaram a estruturar o projeto. Por causa da pandemia, cada um fez o seu. Ao final, mais de 30 produções já estavam arquitetadas. Para o refinamento de todo o material criado, todos se instalaram numa casa em Salvador, próximo ao estúdio de gravação, para em 8 dias amarrarem as bases do disco. “Foi aquela força operária para que em uma semana a gente levantasse o disco. Foi uma imersão”, ressalta.
Diferente dos anteriores, a estética foi criada com mais elementos eletrônicos que o usual, deixando em segundo plano os orgânicos. “Fizemos uma coisa do nosso tempo com o pouco recurso que a gente tinha. No primeiro disco a gente teve uma pesquisa com base mais jamaicana, flertando com esse universo mais tocado, bem banda, cultura do grave, dancehall. Já o segundo, a gente buscou colocar uma verve que é nossa já de muitos anos que é o rock. Agora nesse, a gente pesou nas questões eletrônicas. Fizemos um estudo mais tecnológico das coisas. E esse foi o resultado, bem misturado, bem original”.
Pela diversidade, o álbum não é retilíneo. Possui diferentes texturas, que são resultados dos experimentos e experiencias de cada um dos envolvidos. Mas mesmo não seguindo em linha reta, é coeso. Os assuntos, narrativas, histórias e poemas são entregues (sem açúcar) de forma crua já na primeira audição. Não é necessário ouvir mais de uma vez para entender a proposta, porém, a cada nova audição as mensagens ficam mais perceptíveis e potentes.
“A gente ouve muita coisa diferente e, ao mesmo tempo, todo mundo ouve as mesmas coisas. Enquanto um está pesquisando jazz africano e rock da Turquia dos anos 70, o outro está escutando música eletrônica, pesquisando grime ou dub. E a gente fica meio nessa loucura. É uma parada muito 360, não é linear. E quando a gente junta pra fazer as coisas, vai ser tudo bem híbrido, bem diferente”.