O RAP sempre esteve fora do jogo mercadológico criado pelos grandes players da indústria fonográfica. Seguiu o caminho oposto para manter seus princípios. Desenvolveu a própria identidade, tendo a mensagem como base. Os temas, em sua maioria, estavam relacionados aos problemas enfrentados pela camada mais desfavorecida da sociedade. Mas o teor das ideias foi se modificando com o passar do tempo.
A evolução tecnológica e a ascensão social proporcionada por um razoável acesso econômico também contribuíram para a mudança de direcionamento e adesão de algumas imposições do mercado, antes rejeitadas, para atender a demanda. Assim, uma parcela considerável de MC’s mudou o direcionamento das letras, visando em primeiro lugar conquistar views, likes e plays em mídias e plataformas digitais. As regras foram seguidas à risca, fazendo com que a mensagem perdesse relevância. Não há mais uma preocupação generalizada com o poder da escrita, impulsionada pela criatividade. Porém, nem tudo está perdido. Ainda há quem resista às tentações pelo propósito de compartilhar ideais agregadores, de transformação.
Esse desvio causado pela urgência de reconhecimento é abordado pelo rapper Npe³ no EP “O Último Homem das Letras”, o seu primeiro trabalho solo. Nele, o MC de Campinas, no interior de São Paulo, usa técnicas que demonstram o devido valor que as composições de RAP merecem ter, reforçando a importância de se transmitir algo que seja relevante para a disseminação de conhecimento e, consequentemente, altere a visão das pessoas em relação a determinados assuntos que permeiam o cotidiano, os relacionamentos, a sociedade, a vida, o RAP.
“Nenhuma das músicas do EP está presa a uma única linguagem instrumental, porque minha música não está ligada a um rótulo. Almejamos nossa evolução lírica para fazer bem feito em qualquer subgênero dentro do RAP”, diz ele.
De 6 tracks, o EP “O ÚLTIMO HOMEM DAS LETRAS” marca os 6 anos de retorno do NPe ao RAP. A produção musical é assinada por André Miquelotti; os beats de Samael, DropAllien, Daniel Chimp, Frank Jay e também de André Miquelotti; e participações de Ferjay e NEGGA. Cada uma delas tem como objetivo mostrar que é possível unir ritmo e poesia, usando aquilo que o MC foi “projetado” para fazer: apresentar toda a sua habilidade com as palavras.
A produção musical transita entre perfeitamente entre o boombap e o trap. Não se prender a uma única linha instrumental aumenta o leque de possibilidades.“Basicamente sou do tipo que gosto de transitar por todos os eixos de instrumentais, mas confesso que os mais agradáveis são aqueles com batidas “épicas”, digamos assim, que já no início define o peso da caneta que está por vir… Samples bem elaborados também abrilhantam meus olhos absurdamente”.
Simultaneamente com o disco, Npe³ soltou o videoclipe de “Raro /Cypher 2.0”, dirigido por Jessé Prado e produção executiva da Lamv Produtora.
*Fotos: two.gart
Faixa por Faixa
Intro
Acompanhado por um instrumental carregado de sintetizadores e batidas acentuadas, Npe³ dá uma pequena amostra do que está por vir. Em menos de 2 minutos, ele conta sua trajetória e apresenta a proposta conceitual do projeto. “Eu vim plantar semente da vitória, e tu cantar igual canarinho”, diz um dos versos.
Homem das Letras
O sample de “Thunderstruck” do AC/DC faz a base instrumental, que ganha elementos do funk brasileiro. O experimento deixa a sonoridade agressiva, seguindo a mesma linha dos versos que tratam de superação, autoconfiança e a convicção de que será possível atingir os objetivos traçados, independentemente das circunstâncias.
Flow Geraldo Walkman Ft. Ferjay
O título é um trocadilho com o nome do ex-governador do estado de São Paulo – um dos que mais tempo esteve no comando de SP, sem fazer mudanças efetivas. Na letra, Npe³ e Ferjay mostram que apesar da opressão do sistema e o desgoverno dos representantes políticos é possível manter o foco no propósito de vencer. O trap dá a tonalidade para que as ideias dos MC’s sejam enfatizadas.
Anota a Placa
Do contemporâneo trap da anterior, Npe³ volta ao final dos anos 90 para fazer suas rimas em cima de um boombap intenso, que saúda os gênios do RAP como Sistema Negro, e do futebol como: Romário, Henry, Neymar. Para complementar a visão de se manter vivo e aprender com as adversidades da vida, Frank Jay inseriu um recorte da fala de Rocky Balboa sobre continuar tentando. É quase que uma continuidade de Flow Geraldo Wakman.
Mãos Dadas Ft. NEGGA
A fusão de R&B com boombap deixa o background envolvente [marcante] para a abordagem de uma temática romântica, que recebe a colaboração da cantora NEGGA.
Raro/Cypher Solo 2.0
Dividida em duas partes, “Raro/Cypher Solo 2.0” usa o trap para acompanhar as primeiras linhas e o boombap na segunda. Os dois tempos tratam de temas distintos, o primeiro transita com linhas sérias de desabafo, sobre as músicas atuais de destaque no mercado atual do RAP, mesmo sem ter compromisso em transmitir uma certa criatividade lírica efetiva; e o outro mais ameno alivia a pressão, servindo como uma espécie de contradição perante a tudo aquilo que o EP conduziu, porém, o tom sarcástico e “freestyleiro” dá o toque de ironia.
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