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MV Bill

As crônicas de MV Bill sobre o cotidiano caótico de um país desestabilizado

No álbum "Voando Baixo", o MC da CDD aborda temas relacionados à pandemia, desgoverno, desvalorização da vida, falta de esperança.

“Eu não sei se eu faria um disco desse se a gente estivesse em outro momento. Eu sempre faço uma música ou outra contundente, mas um disco como esse é muito específico para este momento. Se daqui a três meses acabar a pandemia não sei se nem se esse disco vai fazer sentido mais, porque normalmente quando as pessoas estão fora de um momento, elas querem ouvir músicas mais alegres, para dançar”.

A afirmação de MV Bill corresponde com o que se ouve em “Voando Baixo”. Mais uma vez, ele descreve a realidade brasileira. O recorte não poderia ser outro: covid-19, pandemia, desgoverno, desvalorização da vida (principalmente de pretos e pobres), falta de esperança. São mais de 42 minutos, divididos em 12 músicas, que refletem os últimos três anos do país. É uma crônica sobre o cotidiano caótico de um país cada vez mais desestabilizado.

“No mundo normal que a gente vivia, isso já era dito, só que não era visto ou ouvido… e agora neste momento, eu acho que as pessoas vão dar mais atenção e quando esse momento passar, e ele vai passar, a gente pode construir essa nova realidade a partir das atitudes que a gente está tendo agora”, observa.

Tão áspero quanto o período atual, o álbum começou a ser desenvolvido depois de algumas “cobranças” recebidas por fãs nas redes. Atentamente, Bill ouviu os pedidos e logo colocou o plano em prática. Ele diz que esse é mais político que os demais. Escolheu ser reflexivo. Por esse motivo, as produções do DJ Caique e (uma delas do) Tibery têm um certo grau de rigidez. Toda a estrutura segue uma linha parecida dos clássicos “Traficando Informação” e “Declaração de Guerra”. “Eu tenho prestado bastante atenção no que minhas redes têm me dito… não deixo de fazer as coisas que eu acho importante, mas as redes tem ditado bastante qual o caminho que eu devo seguir. Como é um disco muito específico, eu fugi um pouco dos beats mais dançantes. Então, fui procurar o Dj Caique, que é um produtor que faz beats sampleando trilha de cinema. Às vezes são músicas que nem entraram na soundtrack… é trilha que só foi usada pra cena”, afirma. “E como é de filme, ele acaba pegando trilhas mais tensas, que era justamente o que eu queria pra esse trabalho. Agora, tinha uma música específica (Milicitico), que eu queria que tivesse uma pegada diferente com um pouquinho mais de eletrônico e uma voz mais suave no refrão. Ai chamei o Bob do Contra pra fazer o refrão e o Tibery, que é de lá do Espírito Santo, pra fazer essa faixa”.

 

MV Bill
Foto: Thiago Lima

 

O tempo para desenrolar as ideias foi curto. Fazer tudo em menos de três meses foi necessário para pegar o assunto ainda quente. É um registro contundente e crítico do presente, que poderá fazer diferença no futuro. Apesar de terrível (tipo um roteiro de algum filme de terror do Jordan Peele), a história precisa ser contada, principalmente pela ótica dos que mais sofrem por causa do negacionismo e descaso promovidos por aqueles que deveriam estar na linha de frente para proteger seus cidadãos. Kmila CDD, Nocivo Shomon, ADL, Stefanie, Bob do Contra, Marrom e DJ Luciano Rocha ajudam a construir as narrativas.

“Esse trabalho ficou um pouco mais político do que os outros, todos os outros têm um pouco de política social, mas esse tem muito de política partidária… de mostrar que as coisas só vão ser modificadas do jeito que a gente precisa através da política e não pedir que outras pessoas venham nos representar”, observa. “A gente tem que entrar lá e fazer essa mudança de alguma forma. E por conta dessa situação de ficar isolado, de não poder sair, de perder parentes, de perder os amigos, de ver o negacionismo ganhando força, uma falta de coordenação política pra não deixar ficar mais crítico do que já era”.

 

OFF
“Eu acho que é uma precipitação muito grande quando as pessoas gritam (eu sei que a gente tem essa vontade de dizer) a FAVELA VENCEU, mas a realidade ainda não é essa não. Tem muita gente na favela com a camisa do perdedor, agindo como perdedor e sendo tratado como perdedor. Não tem favela venceu. o que aconteceu foram algumas vitórias pontuais. Tem algumas pessoas que venceram e eu acho foda demais. Mas pra favela vencer é preciso de um trabalho coletivo. Esse é um processo mais em longo prazo.”

 

Apesar de não estar fazendo shows há mais de um ano, MV Bill teve uma maior aproximação do seu público durante o distanciamento social. Sem ter apresentações, o rendimento das plataformas digitais tornou uma das fontes de renda para a grande maioria dos artistas, incluindo o MC da Cidade de Deus. E para que todos possam ouvir “Voando Alto”, ele também soltou no Youtube. Essa tem sido uma tática usadas para da acesso àqueles que não tem conta premium ou não utilizam plataformas de streaming.

“A internet é uma grande porta de entrada, mas também pode ser uma grande porta de saída (se ela não for muito bem utilizada e alguns artistas acabam não sabendo utilizar). Eu aprendi a tratar a pessoa que curte o meu trabalho como a minha riqueza, a minha prioridade… é aquilo ali que me mantém vivo. Você pode lançar o melhor trampo do mundo, com os melhores produtores, os melhores synths, a porra toda, mas se não tiver pessoas pra clicar no seu produto não vai valer de nada… você não vai alcançar absolutamente ninguém. Então, se tem alguém que tem que ser cortejado é o público. Mais do que nunca é o público que toma a decisão”.

Para manter esse relacionamento com os consumidores da sua arte, e “alimentá-los” intelectualmente, o Tio Bill também já tem um livro de contos no esquema. Assim como nas músicas, o conteúdo da obra é baseado na vivência dele. “Eu escrevi o livro em 2020… nem tinha pensado em fazer um álbum. Fiz um livro com 27 contos, que eu falo de algumas histórias conhecidas da minha vida e outras nem tanto. Então, tem histórias lá da minha infância, da minha juventude, mas também te histórias mais recentes, como da vez que toquei com arma na cintura no (festival) Free Jazz… mas ninguém sabe o que aconteceu por trás daqueles bastidores, e a minha participação icônica no programa do Faustão, que muita gente só sabe daquilo que aconteceu na frente das câmeras. Mas eu conto os bastidores nesse livro”, revela. “Tem fotos minhas com vários rappers, junto com o presidente Lula (e ele com o boné Hip hop na cabeça). Vira e mexe essa foto aparece na internet e muita gente não sabe o que é. Aquilo foi a primeira comitiva de Hip Hop que se juntou para ser chefe de estado no mundo, porque naquela época o Hip Hop não era nem considerado música. São essas histórias que eu conto. Ele estava até no meu radar para ser lançado antes do disco, mas ele se tornou uma urgência tão grande que eu resolvi passá-lo na frente (mesmo o livro já estando pronto)”.

 

 

Indicamos também: no RADAR: Bface. Leia AQUI.

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