Assim que a pandemia foi decretada oficialmente no Brasil, em 14 de março de 2020, MV Bill teve que cancelar um show agendado em Maceió. No mês seguinte, sem certezas sobre o futuro, começou a pensar na estrutura do seu primeiro livro solo, “A Vida Me Ensinou a Caminhar”. Os três anteriores (“Falcão: Meninos do Tráfico”, “Falcão: Meninas do Tráfico” e “Cabeça de Porco”) foram escritos juntamente com Celso Athayde e Luiz Eduardo Soares.
“Eu sempre acho que eu tenho um monte de histórias ainda pra contar”, disse ele via Zoom diretamente do seu escritório próximo à Cidade de Deus, no Rio. “A diferença é que esse é o primeiro livro onde eu vou colocar uma coisa pessoal de uma forma mais viceral, até porque não é de nenhum tipo de tema, como foram os outros, que falavam sobre criminalidade, jovens no tráfico de drogas. Dessa vez não, é a minha história”.
Nos 27 capítulos da obra, o MC fala sobre o conceito de “Soldado do Morro”, “Traficando Informação”, “Só Deus Pode Me Julgar” e “Estilo Vagabundo”, e também do que aconteceu em alguns momentos icônicos do hip hop brasileiro, como no encontro em 2004 no Palácio do Planalto com o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Não era de menor importância, mas não tem a ver com o contexto político que as pessoas imaginam”, observa.
De relatos coletivos aos pessoais, inclusive do dia que quase morreu, Bill faz um paralelo entre sua vida e o contexto dos momentos vivenciados por ele dentro e fora do rap. Comparando a diferença entre compor músicas e escrever literatura, ele afirma que o primeiro é menos difícil porque o grau de dificuldade do segundo é um pouco maior.
“O meu processo de escrita para o livro é muito mais denso e árduo do que o da música”, revela. “E como não é uma ficção, e eu vou lidar com pessoas públicas, tem que ter um cuidado na forma de falar. Não é mascarar, mas ter um cuidado”.
É por esse motivo, que ao discorrer sobre o início da sua carreira, ele preferiu colocar nomes fictícios em alguns personagens citados, por causa dos diferentes caminhos que a galera que andava com ele tomou. “Tem gente que é evangélica, tem gente que virou de direita, tem gente que virou não sei o que lá. Pra não ter problema, porque não sei se todos querem ser lembrados, eu mudei os nomes”.
Mesmo envolvido com os livros a um bom tempo, o rapper acredita que a literatura no país não tem o valor merecido, ainda que tenha esperança de que as pessoas leiam o seu livro pelo interesse em saber mais sobre a trajetória dele. O seu objetivo é que as histórias contidas nas mais de 200 páginas cheguem nas periferias, nas pessoas pobres e pretas, porque se conecta com a luta diária e a perseverança da maioria dos brasileiros, que muitas vezes pensam em desistir, como o próprio autor também pensou.
“Queria que a pessoa tivesse a sensação de estar ouvindo a minha voz ao ler”, destaca. “Acho que por conta do conteúdo a gente pode atingir pessoas que não tenha o hábito da leitura”.
A transformação do rap
Nos seus mais de 30 anos de música, MV Bill acompanhou as diversas transformações do rap e o nascimento de diferentes subgêneros. Quando começou, o funk era quase que o som oficial das comunidades do Rio de Janeiro, considerado uma forma de comunicação e de mostrar a realidade de quem vivia ali para os de fora.
Antes presente apenas nas quebradas cariocas, o som do tamborzão virou um fenômeno nacional. Antes disso, principalmente entre os anos 90 e 2000, o rap dominava as favelas de São Paulo. Tocava nos alto-falantes dos carros, que ficavam com os porta-malas abertos, nas casas, nos bailes e quase em todos os lugares. Agora é o funk que dá o tom.
Na visão do rapper, essa substituição não quer dizer que seja algo ruim, porque ambos se complementa. Mas pela expansão musical, seja na forma de produção, entrada no mercado e de se conectar com público final, o funk virou o jogo.
“Hoje tem uma coisa que eu nem sei o nome que dá. Chamam de trap funk, mas acho que não é isso exatamente”, diz. “Mas tem uma parada que foi criada pelos MCs do RJ, que é um meio termo, porque não é tão acelerado como funk nem tão lento quanto o rap, e tem um tambor no meio, que na verdade é um tamborzinho, tá ligado!? Ao invés de fazer aquele batidão, faz tu-ta-ta-ta-cun-du.. e o cara não rima, canta”.
Para MV, as mudanças no decorrer do tempo influenciaram diretamente na forma de curtir os shows, porque criou-se um outro tipo de público com ouvido diferente. Essa diferença também “interfere” na hora de curtir os shows, que passou de uma pegada introvertida para a participação mais efetiva.
“Os nossos shows a galera curtia balançando a cabeça, às vezes só levantando as mãos. Hoje eu vejo muitos shows que as pessoas estão pulando. E quando tem um show em que elas não pulam parece que não tá bombando”, observa. “Tem música que é pra pular, e tem música que é pra pensar, que é pra refletir, e tem música pra ouvir abraçado, pra dar uma dançada. Tem vários tipos de rap”.