O “pós-pandemia” fez a quantidade de festivais multiplicar. O difícil é saber se esse é o resultado da vontade do público de tirar o tempo perdido nesses 2 últimos anos ou dos organizadores recuperarem o prejuízo. Independente dos motivos, o fato é que esse retorno também gerou uma certa inflação nos valores dos ingressos. E isso não reflete apenas no entretenimento, porque quase tudo no país segue por um caminho que parece sem volta.
Na sua primeira edição, o festival MITA – uma sigla de Music Is The Answer (Música é a Resposta) – seguiu o mesmo parâmetro financeiro e perfil dos seus “concorrentes” (pessoas brancas da classe média alta), mas não decepcionou no importantíssimo quesito: a organização. Apesar de estar bem distante da realidade do público consumidor de um dos estilos em destaque (o RAP), o evento deixou boas impressões nos que marcaram presença nos dias 14 e 15 de maio na Spark Arena, em São Paulo – da entrada à limpeza dos banheiros (que eram bem estruturados), passando pela atenção dos seguranças e a inexistência de filas gigantescas ou aglomerações nas ativações e praças de alimentação.
Diferente da grande maioria, a distância dos palcos eram mínimas. Dessa forma, era possível conferir todos os shows da programação (todos) sem correria e caminhadas de longas distâncias. Os artistas também não precisaram disputar a plateia, pois não haviam apresentações simultâneas. O line enxuto ajudou a manter tudo dentro do horário, sem atrasos. O único ponto negativo ficou por conta do horário dos shows de abertura, programados para 12h. É por isso também que nos dois dias o encerramento aconteceu próximo das 22h.
Durante o sábado e o domingo, que ficaram entre o sol quente, o vento gelado e a possibilidade de uma chuva, que (felizmente) não chegou, acompanhei quase todas as perfomances, principalmente as de rap. As exceções foram Jean Tassy, Matuê e Gorillaz. Esse último pode ter sido um dos mais impactantes do MITA em SP (nos dias 21 e 22 também será realizado no Rio de Janeiro), juntamente com o do Tom Mish, Liniker, Marcelo D2 e Gilberto Gil.
SÁBADO
Apesar da tentativa, só cheguei na Vila Leopoldina, onde fica a Spark Arena, minutos antes do Black Alien entrar no palco todo de preto, de camiseta estampada com a foto do Outkast, acompanhado pelo Dj Erick Jay e de um intérprete de libras (se não estou enganado, o único em todos os shows). Ele começou com “Mister Niterói”, “Chuck Berry”, “Área 51”, “Caminhos do Destino” e “Carta pra Amy”. O ponto alto foi quando Black mandou a sequência de “Babylon by Gus” e “Sangue de Free”, que levantou geral com o “solo” do Erick nos scratches. O MC interage bem com a plateia razoável em frente ao palco Deezer. Algumas vezes é correspondido, outras nem tanto. Mesmo assim, mantém o sorriso no rosto e não para. Vai de um lado para o outro, pede para que cantem com ele nas mais populares. Segue o clássico estilo da performance de rap, cru, sem nem um tipo de ornamentação, a não ser o telão mesclando diferentes tags com artes das capas dos discos.
Na sequência, às 15h20, Luedji Luna é ovacionada ao surgir como uma deusa. Diferente do esperado, a apresentação foi bem intimista, talvez mais ideal para uma casa menor. Não que isso tenha tirado o brilho. Do início ao fim, a banda manteve a cadência lá em cima e Luedji fez sua voz doce ecoar, criando momentos reflexivos, românticos. Perto do final, vieram aquelas para dançar. “Banho de Folhas” se tornou o ápice. Fez a “poeira levantar”.
Quase uma hora depois, o movimentou aumentou. A chegada da maioria estava concentrada mais para o final da tarde, quando Marina Sena e Gilberto Gil dariam às caras. A cantora mineira reuniu uma multidão, mas para quem não a acompanha (como é o meu caso) não empolgou. Começou desafinando já no início da performance, que faz uma interessante união de música, teatro e dança – tudo com muita sensualidade. A presença de palco é impecável. Ela sabe como cativar com sua maneira única de interpretar, seja cantando ou fazendo coreografias.
E o @DjErickJay riscando no show do Black Alien!? pic.twitter.com/lNiDu5oxj1
— RAPresentando (@RAPresentando) May 14, 2022
Por outro lado, Gil apostou na simplicidade. Sentado com o violão no colo, ele cantou vários clássicos da sua carreira. Apoiado pelos filhos Bem Gil (violão e guitarra) e José Gil (bateria e percussão), os netos João Gil (violão e baixo) e Flor Gil (teclados e vocais), e o baterista Marcelo Costa, segurou a atenção. Como se estivesse à vontade no sofá da própria casa, o cantor mostrou que continua em boa forma. Também aproveitou a ocasião para dar oportunidade à neta Flor, que pela primeira vez cantou num festival. É verdade que a adolescente está apenas dando os primeiros passos na música, e a estreia dela ali pode ser comparada com a de um jogador da base que recebe a oportunidade de disputar a final de campeonato no Maracanã. Sentiu a pressão, se emocionou e recebeu o afago do avô e o apoio dos espectadores.
No começo da noite, Tom Misch deu às caras com seus parceiros. Impossível não se impressionar com a precisão de cada som. A entrega saiu melhor do que o esperado. Era como se estivéssemos ouvindo o disco. Tudo muito redondo. Os detalhes ficaram bem perceptíveis, das marcações do triangulo na percussão aos synths, linhas do baixo e das três guitarras. Mais técnico do que performático, Misch conseguiu manter o nível lá em cima do começo ao fim. Também tentou se ambientar falando quase sempre obrigado com seu português carregado. No repertório, fez um “catado” das mais bombásticas dos álbuns “Geography” e “What Inda Music”, que fez com Yussef Dayes – nessas, o baterista manteve a estética complexa criada por Dayes. Tudo impecável.
DOMINGO
A mesma vontade de estar cedo do dia anterior também não deu certo. A intenção era ver Jean Tassy, mas o objetivo não se concretizou. Mesmo assim, deu para acompanhar da grade (já que a imprensa não tinha acesso privilegiado ao fosso, em frente aos palcos) Coruja BC1. Ele foi quem literalmente abriu o segundo dia do MITA com músicas do “Brasil Futurista”. Até então, as pessoas estavam chegando e quem já estava por ali se ambientava para ver qual era. Observando a passividade da maioria, o rapper mandou a real: “vocês pagam caro pra estar num festival e não curtem? Quando eu pago caro, eu quero aproveitar ao máximo”. Porém, o puxão de orelha se tornou apenas um coadjuvante. Sem DJ, mas com uma cozinha bem redonda, coordenada por Theo Zagrae, Coruja mostrou toda sua desenvoltura e fez um show marcante. Larissa Luz o acompanhou em “Aconteceu”, uma parceria mais que perfeita, assim como a experiência de quem pode acompanhar.
Na metade da tarde, já com uma quantidade de gente considerável, o Heavy Baile aumentou a temperatura. O funk carioca tomou conta e colocou todos para dançar sem dó nem piedade. Para protestarem contra a morte de jovens negros e o racismo diário no Brasil, MC Tchelinho fez um cover de “Olho de Tigre”, do Djonga, e teve o momento “FOGO NOS RACISTAS”. As danças e o pancadão serviram de preparação para o que viria depois no Palco Villa-Lobos: Liniker. Toda brilhante, combinando com o cenário e o sol que iluminava de forma tímida, a cantora colocou ainda mais lenha na fogueira. No rejunte, ela tinha músicos e musicistas pretos – inclusive com naipes de metais -, vestidos de branco, e com um groove alinhado.
Até nos momentos mais leves, a cadência se manteve. Transmitindo felicidade e muito amor, Liniker compartilhou canções do recente disco “Indigo Borboleta Anil”, alguns sucessos, como “Zero”, e relembrou de um baile black que tinha na sua cidade, Araraquara, onde conheceu as pedradas da black music brasileira. Uma delas era “Não adianta”, do Trio Mocotó, que interpretou magistralmente. Por não ter tido a oportunidade de vê-la antes, fiquei impressionado com a impactante desenvoltura, o carisma e a presença dela naquele espaço.
Quando o relógio marcou 16h20, Marcelo D2 já estava rimando “Bem vindo meus cria”, ao lado da esposa Luiza e do filho Sain, quando soltou: “agora é 4h20, já hora de mandar o Bolsonaro tomar no cú?” Como de lei, Dj Nuts estava nas pick-ups e a banda no complemento. De início, ele veio com as mais recentes dos discos “AMAR é para os FORTES” e “Assim tocam os meus TAMBORES”. Mais para o final, as clássicas ecoaram nas torres de som. Incansável, ele ia de um lado para o outro, interagia com seus parceiros e o publico, abraçava o filho e lançava as brabas. Homenageou Chico Science e a Naãl Zumbi, e claro: convocou os maconheiros presentes. Sempre naquela energia, D2 segurou a onda com 26 sons na lista, talvez a maior de todas.
Antes de sair para pegar a estrada de volta para o interior de São Paulo, observei vários pais com seus filhos adolescentes para acompanharem o Matuê, e outros chegando já no fim da festa para apenas ver o Gorillaz.