O bumerangue é uma arma usada para caçar [apesar da crença de que seja um brinquedo], que depois de ser arremessada faz uma curva e retorna às mãos do lançador. Ela vai, cumpre seu objetivo, e volta. É isso que o Renan está fazendo todos os meses para resgatar os “sons perdidos” do Inquérito, que em 2019 completa 20 anos.
Conversei com o Renan sobre o projeto “Bumerangue”, que será composto por releituras e experimentações. Na conversa também falamos sobre a educação brasileira e “Miséria 2.0”, música que escancara a verdade, mostra realidades, dores, cores, mentiras. Como sempre, ele usa afiadas metáforas para jogar um holofote nos problemas que, mesmo com o passar do tempo, não foram resolvidos.
“Irmão, já era uma luta. Hoje a luta é maior ainda. é uma concorrência desleal. Você concorre com a banalização, que antes era disseminada apenas pela televisão. Agora ela vem de diversos lugares… via mídia, redes sociais”, diz Renan.
“Miséria 2.0” se encaixa muito bem na atual realidade brasileira.
É louco pensar que essa música é de 2009, né mano!? É uma releitura. Saiu no disco “Mudança”, que é de 2010. E a letra foi feita em 2009, tá ligado!? Aí, para regravar agora eu fiz algumas adaptações. Por exemplo essa parada de fake news não tinha, mas a ideia toda é de 10 anos atrás… eu sempre falo: ou nós estávamos muito a frente ou o Brasil que está muito atrás ainda, tá ligado!? Acho que também a gente vive uma miséria de espírito, hoje em dia. Uma miséria que não é só financeira. É intelectual. Cada dia mais o ser humano está mais egoísta, cada vez a educação tem menos valor… e a rede social tem mais. Daqui a pouco a molecada vai querer ter aula pelo facebook. É assim: a liberdade para ser miserável é a miséria da liberdade… o Boaventura de Souza Santos já dizia isso.
Todo esse problema vem de muito tempo, mas hoje uma parcela da sociedade não está muito preocupada em mostrar essas “misérias”, principalmente depois que teve o “aval” do atual governo…
Concordo! Eu acredito que esse governo não criou isso. Já existia. Falar que esse governou criou algo é dar muita capacidade. Ele é tão incapaz, que nem disso é capaz. Essa “miséria” já estava nas pessoas. Vinha sendo alimentado pela sociedade. E aí, o governo veio e deu o aval.
O Inquérito sempre aborda temas que incomodam alguns, mas abre os olhos de outros. E a educação está sempre atrelada ao trabalho que vocês fazem. Como “colocar na cabeça” da molecada, nascida e criada na internet, de que a educação é importante, num período em que tem um mar de gente dizendo o contrário?
Irmão, já era uma luta. Hoje a luta é maior ainda. é uma concorrência desleal. Você concorre com a banalização, que antes era disseminada apenas pela televisão. Agora ela vem de diversos lugares… via mídia, redes sociais. A propaganda do mal aparece muito mais do que a propaganda do bem. Tipo assim: já era difícil, agora está um pouco mais.
“A liberdade para ser miserável é a miséria da liberdade”
O rap teve um papel importante nesse combate. Mas ao longo do tempo foi deixando esses assuntos de lado.
É muito louco isso, porque eu conheci o rap deste jeito, combatente. Eu conheci o rap dessa forma, com esse objetivo. Eu não conheci ele de outra forma. Pra mim é até difícil entender ele de uma forma que não seja combativa, que não seja consciente. Eu tenho essa dificuldade, porque foi assim que ele me resgatou, que ele opera na minha vida. E isso é muito louco, porque as outras gerações conheceram de uma maneira muito mais superficial… conhecem o rap, mas não conhecem o hip hop, tá ligado!? Como assim!? É tipo: você conhece o doce de banana, mas você nunca comeu banana.
Os saraus e slams também têm sido importantes para o compartilhamento dessas ideias.
Sim, mas o slam tem muito mais holofote do que o sarau. o slam é competição. Tem recompensa, tem cachê. O sarau não. O sarau é um espaço quase que de criação. É um espaço pedagógico. Tipo: a menininha que faz a poesia da borboletinha e o tiozinho que lê pela primeira vez um poema pela primeira vez com a mão trêmula, nunca vão ir no slam. Porquê? Por que o slam é um bagulho muito competitivo. E é muito louco você ter tocado no assunto, porque a maioria dos poetas que estão aí no slam fazendo bonito foram formados no sarau. O sarau é um grande ambiente de formação. Só que é isso, assim como a escola… mano, sabe o que é a escola? A escola é tipo uma senhora que trampou a vida inteira e agora foi descartada, tá ligado? É tipo uma vaga de deficiente desrespeitada no estacionamento. Todo mundo acha bonito, mas ninguém respeita.
Isso fica claro com a busca de informações em meios duvidosos.
Mas uma coisa é informação e outra coisa é conhecimento. Informação não é conhecimento. A gente é bombardeado de informação todos os dias. Agora, transformar isso em conhecimento é outro processo.
É evidente que em Bumerangue vocês vão continuar abordando esse e outros temas que estão em voga no Brasil. Mas queria entender um pouco o processo de construção do projeto. A cada mês vocês vai ter uma música com um videoclipe e em dezembro sai o álbum completo?
É um projeto de comemoração… só que a gente é igual carnaval: trampa o ano inteiro, desfila uma hora e ainda no dia do desfile ainda chove. Então, eu quis comemorar não apenas um dia, são 20 anos, né!? Não vai acontecer de novo. Daqui 20 anos eu nem sei se vou estar vivo, se eu vou estar fazendo rap. Então, eu quero fazer a festa durar mais que uma noite. Fazer durar o ano inteiro. Por isso, vamos lançar uma música por mês. Aí, no final vai virar um álbum. O nome Bumerangue é justamente por causa disto: é algo que foi e está voltando. Serão nove faixas, porque começou em abril. De abril a dezembro, uma por mês, dá nove. Começou em abril porque é o meu aniversário e o aniversário de 20 anos do Inquérito, entendeu!? Sem contar que nove meses é o período da gestação de uma vida. Então, esse é mais um filho nosso. É o sétimo disco do Inquérito. E esse formato a gente quer experimentar pra ver como vai ser.
Mas ele é composto apenas de releituras ou tem algumas inéditas?
Esse é um projeto de comemoração de 20 anos do Inquérito. Então, eu não quis fazer um disco novo porque o Tungstênio fez um ano agora. Mas é 20 anos, né!? Não pode passar batido. Aí, pensamos em fazer releituras de músicas que a gente acha que tinham potencial (quando foram lançadas), mas não foram aproveitadas. No estúdio começamos a criar… e as músicas inéditas surgiram. Então, vamos colocar três inéditas.
Vai rolar participações?
Em todas as músicas têm participação, tá ligado!? Cada uma das músicas estão sendo refeitas do zero. Não é um remix. É uma releitura em que eu estou gravando a voz de novo. A interpretação é outra. A entonação é outra. Estamos trazendo participações que não existiam. Mudamos tudo. Tinha música sem refrão que eu coloquei e outras que eu tirei o refrão. Tem música que eu escrevi uma outra parte. Tipo: tinha duas e eu coloquei uma terceira. Olhei e falei: mano, tá faltando uma parte aqui. Vamos fazer. Não tem frescura de não vamos mexer. Tinha letra lá que falava de SMS. Ninguém mais manda SMS. Estamos falando de 10 anos na atual era. Em 10 anos quantas coisas não aconteceram no mundo? Muita coisa mudou. Então, não tem como eu fazer uma letra falando de SMS. Aí, dei uma atualizada.
Isso é importante, porque a geração atual terá a oportunidade de ouvir essas músicas com essa roupagem atualizada.
Eu acredito nisso também. Acho que uma das ideias é fazer esse link. É mostrar pra galera que nós não surgimos agora. Porque é muito louco, tem gente que acha que o nosso primeiro disco é o “Corpo e Alma”… e na verdade ele é o quarto. Só que a molecada nos conheceu por que ele ganhou uma evidencia maior.
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