ENME está sempre se movimentando. Assim como o título do seu EP, é movediça. Nele, a cantora e rapper faz mais um de seus experimentos. Mergulha nas interconexões da música preta, fundindo elementos do trap, afrobeats, amapiano e reggae. “Eu quis mostrar minha arte pensando também na maneira mais prática de até mesmo poder focar nas quatro músicas que eu queria que entrasse, de dar o tratamento necessário, de refinar a mixagem, de refinar a masterização, de ter esse tempo de fazer isso”, diz ela sobre o processo de desenvolvimento do projeto que considera ser o mais chique que fez até o momento. Os motivos, ela explica ao longo desta conversa feita por videochamada.
Do Maranhão, ENME é uma das participantes do AFROPUNK Experience, que em 2025 será realizado em São Luís. No dia 02 de agosto, na Arena Dux – Espaço Reserva, ela dividirá o palco com Mano Brown e Duquesa. “A gente tá querendo trazer uma gig ao vivo, fugir um pouco dos beats”, releva a dinâmica dos shows. “Tanto que tem momentos que eu tiro o beat total e fico só com a minha banda. O novo repertório conta uma história de como essa influência, principalmente do reggae, quechega no Maranhão através das ondas sonoras. Traz uma linguagem um pouco mais orgânica. E o mais legal é que a gente vai ter outras versões de músicas minhas lá de 2019… É como se aquela criança que ouvia o reggae se tornasse a ENME através dos Sons da Liberdade e descobrisse essa maturidade com EP “Movediça”.
Movediça tem uma pegada bem afrobeats, traz uma cadência mais dançante. Já era intenção fazer um trabalho com essa estética?
O Afrobeats é uma coisa que sempre me influenciou. Desde 2021 tenho ouvido bastante e tentando chegar nessa cadência que você ouviu no EP. A produção dele começou assim que eu me mudei para São Paulo… me conectei com o Kafé, me conectei bastante com o Sanvtto, e aí comecei a conversar com eles sobre a ideia de fazer um EP que trouxesse o amapiano, que trouxesse o afrobeats. Antes mesmo de Tyla ser todo esse fenômeno, a gente já estava pensando em fazer esse EP. NO processo, a gente resolveu dar uma abrasileirada, trazendo a essência da ENME de 2017, que tinha muito flow, mas que também pudesse brincar com uma ENME influenciada pela R&B, que traz essa coisa do trap também com beats de cadência, beats dançantes, envolventes. Movediça é essa sensação de você ser engolido, de você mergulhar num universo de sensações, de romance, de sentimentos.
Também traz uma transformação estética, porque é diferente do anterior. Não tem muito flow e você está cantando mais e trazendo algo que não deixa o corpo ficar parado. Mantém a pista quente. Como que aconteceu essa mudança da ENME que fazia rap e agora vai para um outro caminho, explorando ambientes diferentes?
Então, eu acho que o rap é uma coisa difícil de tirar da nossa linguagem musical, porque faz parte da minha base e consigo aplicar de outras formas, juntando com outras linguagens. Essa transformação, quando a gente fala de ordem dos discos… no último álbum tem duas músicas que ganharam uma nova versão, que é Dance Pra Mim e Pra Te Enfeitiçar. Ali eu trouxe um pouquinho de dancehall, eu trouxe um pouquinho de afrobeats, já sendo um prenúncio do que seria “Movediça”, que também é um anúncio do que será o meu próximo álbum. Então, eu gosto de criar essa linearidade de musicalidades para o público ir acompanhando. E quando eu construí o álbum, já fiz pensando que chegaria um EP de músicas que trouxesse essa linguagem. Mas eu queria experimentar num projeto justamente para conversar com outros públicos e entender como é que essa galera vai receber a ENME nessa musicalidade. Essa é uma preocupação que eu tenho… que apesar de ser influenciada pelo gênero, apesar de ter muita proximidade, tanto na dança quanto no próprio jeito de compor mesmo, é um gênero musical que me agrada muito, que eu gosto muito de estar, que eu gosto muito de participar. Mas eu precisava explicar isso para o público todo que consome, que vem de outras músicas, que vem de outras linguagens.
Existe uma diferença na forma de compor?
Existe. Tem um jeito diferente de compor. Eu estava até brincando que já falei de muita luta, já falei de muitas dores. Agora está na hora de fazer música para o povo se amar, se apaixonar, se pegar. Eu quero muito ser tema de um romance. De repente eu quero, sabe, embalar o primeiro encontro de alguém. Então, são outras inspirações, são outras vivências que trazem essas composições. E aí tem um ponto também que o rap é um lugar muito confortável para eu compor. Eu lembro que na faixa “Esperando O Sinal”, aquele primeiro verso saiu rápido, mas para chegar no refrão, tive que juntar com Dilla para poder ver como seria esse refrão, que melodia era essa… então a busca da melodia é um lugar que me tira da zona de conforto. Movediça também é uma música que saiu com muita facilidade. Lua Cheia eu tive que fazer uma preparação vocal para poder alcançar aquelas melodias do jeito que eu imaginei, do jeito que queria. Teve um novo estudo, uma nova proposta para poder me desafiar e construir esse EP.

De que forma nasceram essas composições? Eu gosto muito de perguntar isso porque às vezes surge de momentos inusitados, outros baseados em fatos, outros de observações… e de acordo com pessoas que cantam e compõem, a música romântica nasce (muitas vezes) de momentos tristes, de perdas, desilusões…
Sim!! Lua Cheia, eu não sei se você sabe, mas lá no Maranhão tem uma das maiores movimentações de maré do mundo. Ou seja, a maré fica completamente seca e completamente cheia. Tipo assim, às vezes até invade a pista e tudo mais. Essa é uma movimentação de maré muito grande. A maré enche e algumas ilhas somem, desaparecem e espaços de areia acabam sumindo. E isso acontece sempre na lua cheia. Pensando nisso, eu criei uma história de amor entre uma ilha e a lua. Então, a música é sobre o romance de uma ilha com a lua que durante toda essa movimentação de maré não se encontram. Quando a lua aparece, quando está cheia, ela fica esperando a ilha encontrar e não encontra. Foi a partir disso que surgiu a ideia de Lua Cheia. Mas também pode ser um encontro entre duas pessoas… esse amor quase que impossível de se encontrar, de você nunca conseguir encontrar a pessoa, mas ainda assim continuar amando. Esperando O Sinal já é uma coisa mais real, é dedicada para uma pessoa mesmo. E aí o refrão já é aquela coisa mais… uma promessa de um encontro que eu comparo muito com a sensação de… Sabe quando você está prestes a subir no palco e cantar? É o primeiro date, aquele momento que você está na pista esperando a pessoa chegar. Te Levo Nos Lençois é um convite, né? Vem que eu te levo pros lençois… pode ser da minha cama ou pode ser dos lençois de areia. E Movediça é a música tema do EP. Essas três outras músicas falam de algo que te pega, te engole, que te domina… às vezes, a gente está tão apaixonada que parece que estamos imersas numa areia movediça.
Contam histórias, né? Uma se conecta com a outra.
É um EP de encontros, vários encontros.
E às vezes as mensagens não são totalmente objetivas. Ela é aberta para que você pense se é sobre isso ou sobre aquilo… e a pessoa que você fez Esperando O Sinal sabe que é dedicado a ela?
Sabe! Eu sou casada com ele. É muito sobre a nossa relação. Sobre a liberdade que a gente tem, sobre o envolvimento e essa coisa, tipo assim, por mais que a gente tente seguir caminhos diferentes, a maré sempre nos empurra pra se encontrar e fluir no mesmo rumo.
Massa demais…
E quando o FBC estava gravando o verso, ele me falou: amiga, você acha que falo de que? Eu falei: amor, essa música é sobre encontro, então pensa no teu primeiro encontro com a Mimi (que é a Michelle, a mulher dele). Inclusive, ele foi para o Maranhão na lua de mel deles, e as imagens estão no visualiser. E aí, ele cantou sobre o encontro deles também. É uma música dedicada aos amores.
De que forma aconteceu esse encontro com o FBC?
Foi uma coisa de internet. Na época que ele estava lançando o álbum O Amor, O Perdão e a Tecnologia Irão nos Levar para Outro Planeta, a gente conversava muito por DM, e um dia ele falou: poxa, eu adoraria te encontrar no estúdio, quem sabe no palco, preciso te conhecer… eu falei: olha, se for no estúdio vai dar música, eu adoraria fazer uma música. Na mesma hora eu disse: pronto, preciso fazer uma música com o FBC. E aí fui para o estúdio… como eu te falei, saiu essa letra. Eu estava ouvindo muito o álbum dele naquela época. Por isso falo que Esperando O Sinal é meio que uma prima irmã da música dele com o Don L, A Estante de Livros. Em 2023, mandei a base, e aí ele foi pro Maranhão, conheceu São João do Maranhão, conheceu as musicalidades de lá e botou a voz na música. Levou um tempo pra ele maturar também o verso, gravou outra versão e aí me mandou no finalzinho de 2024. Assim a gente conseguiu finalizar a música. Um dos objetivos é fazer uma versão ao vivo dela. Já estamos pensando nisso também, quando vai ser, como vai ser, se vai ser aqui em São Paulo, se vai ser no Maranhão… e essa conexão surgiu muito natural, sabe? Eu estava brincando, tirando muita onda com ele, dizendo que ele era a Beyoncé do Brasil, que fazia house. E aí a gente começou a conversar e surgiu essa proposta de música. O que eu acho mais legal é que, tipo assim, o FBC também tem uma música com Auana que tá no EP, e eu não sabia que eles dois estariam nesse trabalho porque Auanna sempre quis fazer uma música comigo e eu sempre quis fazer uma música com ela. Mas não sabíamos quando seria. Mas acabou rolando esse encontro com os dois.
SE EU ESTIVER NO MEIO DA PISTA TOMANDO UMAS E ENTRAR MINHA MÚSICA CO ÚLTIMO ÁLBUM E DESTE EP, EU ATÉ DANÇO, SUBO NO PALCO E FAÇO PERFORMANCE.
Para escolher as participações tem que ter uma certa conexão com o artista. Não dá para ser uma coisa aleatória só com o objetivo de gerar uma atenção e pegar o público deste artista. Tem que ter algo a mais para que a coisa funcione e que não seja algo forçado, digamos assim.
Exato. Tanto que até o jeito de produzir o EP. O Kafé vinha aqui em casa, a gente tomava café junto, fazia um lanchinho ou fazia um jantar pra poder encontrar essas batidas, encontrar essas melodias. Ele me ajudou muito a compor nesse processo. O Sanvtto a mesma coisa. Os músicos que participaram também foram em encontros lá no Maranhão… são pessoas que eu já adoro trabalhar. Todo o universo desse EP tem um carinho envolvido. Tem uma conexão de fato. Eu acho que é mais legal assim, acho todas as feats que eu fiz até hoje são com artistas que eu sou muito fã e que, por sinal, são muito próximos e gente acabou se tornando amigo, amiga e se aproximou até chegar na música. Então a música foi o caminho que uniu a gente.
Você falou que no processo ouviu muito disco do FBC, que é muito bom e tem várias nuances ali, porque ele consegue ir para vários caminhos. Mas além dele, tiveram outros artistas que te influenciaram nesta produção?
Cara, eu estou numa ideia maluca… toda vez que você fala comigo, você percebe que eu falo muito do Maranhão… eu estou nessa ideia maluca (eu tentei, na verdade) de misturar um pouquinho de reggae nisso tudo. Amapiano por um lado, afrobeats aqui comendo e ela querendo puxar o ralentado do reggae em alguns lugares, em alguns momentos. Por isso, fui pesquisar quem que fazia isso, tanto na composição ou na própria melodia. Foi aí que eu vi o trabalho do Skip Marley, um artista que eu ouvi muito para construir esse disco… A Shenseea também, que faz um dancehall delicioso… tanto que tem uma música que praticamente serviu como guia do EP, que é Jane do Skip Marley com Ayra Starr. Eu, assim: nossa, é isso aqui ó, vou puxar umas melodias mais arrastadas, traz um pouco de reggae e vou meter o beat comendo aí, deixa a galera dançar com vibe de pista. Então, Skip Marley, Ayra Starr e Tems, que é assim uma grande referência pra mim. A Tyla também. Acho que o último álbum dela me deu essa segurança de poder lançar um EP, tipo: agora tudo bem, o mercado brasileiro já está entendendo o que é amapiano. Imagina se eu estivesse falando de amapiano e os veículos de mídia e a indústria musical nem saber o que era isso, e a gente tendo que falar sobre… explicar o gênero musical. Então, eu acho que a Tyla preparou bastante esse caminho. O Kafé me apresentou uma DJ da França que se chama Banga, que é muita inspiração de Te Levo Nos Lençois, viu? Ah, tem um detalhe… nessa brincadeira de misturar ritmos e trazer referências, o verso tem muito de Lauryn Hill ali também. Eu estava querendo muito fazer algo que trouxesse um pouco de garage, sabe? Queria brincar com garage, porque a música é eletrônica e tudo mais, mas acabei batendo o martelo de que não seria agora. Então, acho que todas essas referências que eu estava ouvindo trouxeram essa referência.

O amapiano e o afrobeats começou a ganhar o Brasil há pouco tempo e aqui tem muito essa vibe também, porque é música negra e existe essa efervescência. Você já estava ligada no que estava rolando, por isso eu pergunto se na sua visão é algo que a galera vai abraçar ou vai ser uma coisa que somente alguns vão absorver? Porque a gente vê que vários gêneros que vieram bombaram e depois perdeu força…
Na minha percepção, eu penso assim, a gente sempre consumiu afrobeats com o Rincon Sapiência, teve aí também com o próprio Seu Jorge… o que rola na Bahia com afoxé e o axé tem muito de afrobeats. São as mesmas cadências e as claves percussivas com outros nomes. O amapiano é a percussão tocada digitalmente. O que era pra ser um agogô, o que era pra ser um atabaque, agora vem com log drum, agora vem com baixo, mas é levada percussiva. Eu acho que o Brasil vai ficar com a afrobeats porque dentro dele a gente tem afrohouse, gente tem house… então, a galera da música eletrônica já abraçou, a galera do funk já abraçou… o Brasil comercial já entendeu isso, mas não dá o nome. O lance é que o Brasil é um país continental que não consome a sua própria cultura.
A dúvida é: por que você escolheu fazer um EP e não um álbum maior?
Eu vim fazendo músicas… tem músicas que não entraram no EP, tem músicas que estão pra finalizar. De repente “Movediça” ganha uma parte 2… mas a ideia de fazer um EP é justamente porque o público precisava entender um pouco. É uma coisa arriscada você nichar bastante o gênero, Tipo, dizer: eu vou fazer um EP todo de afrobeats e a amapiano, só, pronto. Eu quis mostrar minha arte pensando também na maneira mais prática de até mesmo poder focar nas quatro músicas que eu queria que entrasse, de dar o tratamento necessário, de refinar a mixagem, de refinar a masterização, de ter esse tempo de fazer isso… foi muito mais calmo fazendo EP. Aí depois do EP, recebendo a resposta do público e de todo mundo, eu consigo continuar fazendo meu álbum, consigo fazer, de repente, um volume 2 do EP. Mas eu quero continuar fazendo, só que eu precisava muito desse refinamento, sabe? Quatro músicas você consegue refinar e dar um tratamento melhor, conversar melhor com o público sobre tudo isso, do que um álbum em si… agora, se a galera gostou eu posso fazer um álbum.
Como estão os feedbacks dessa transformação?
Olha, eu tenho recebido feedback, principalmente nos shows. Agora o meu show está um pouco mais coeso. Eu achava que era péssima cantando música romântica no show. Eu não sabia o que fazer. Eu sempre fui daquele jeito: o coro comendo e tal, tal, tal, tal, tal, e ela mandando rima, e o povo dançando, e coreografia. Agora não, dou uma ralentada, converso com a galera, a galera dá um beijinho, flerta ali no show. Então, a galera tá curtindo. Eu sinto que a galera gostou, estão comentando e me mandam mensagem dizendo: nossa eu adorei o EP. Eu acho que com a coesão e o refinamento, as músicas são as mais elegantes e chiques que eu já fiz em toda a minha carreira. Antes de lançar, eu fiquei com esse EP três meses guardado. Eu mandei pra muita gente, eu mostrei muitas vezes ele aqui. Cheguei a dizer: não quero mais saber de pop, não tenho dinheiro pro mercado pop. E o povo: mas nossa, essas são as músicas mais pop que você já fez. E eu: mas gente, por que vocês acham que isso é pop? Dizem que é pelo jeito de cantar. Então, todo mundo ao meu redor meio que entendeu que aquelas músicas tinham um grande potencial.
Mas era um medo de colocar na pista, ou perfeccionismo mesmo?
Perfeccionismo, planejamento… tem que alinhar os chakras com todo mundo. Mas foi um aprendizado também de não lançar de qualquer jeito, conversar com mais gente, de poder trocar essa ideia aqui contigo, de ter essa experiência de: vamos esperar tudo se alinhar para poder soltar. Foi uma coisa que me deu mais segurança, mais calma pra lançar. Posso dizer que é o meu EP mais chique e gosto muito dele. Eu tenho muita dificuldade de ouvir o meu primeiro EP porque não me reconheço na qualidade de voz, não me reconheço naquela importação de voz. Agora não, se eu estiver no meio da pista tomando umas e entrar minha música do último álbum e deste EP, eu até danço, subo no palco e faço performance.