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Almas libertas no Theatro Municipal de São Paulo

O tempo está abafado. É quase 15h30. Saio do metrô República. Uns quatros fiscais da prefeitura cercam um ambulante com um carrinho de mão (carriola) repleta de frutas. Sabendo que vai perder o seu ganha pão, ele se irrita e vira a carriola. Tudo se espalha. Um policial corre na direção dele com violência. O rapaz é detido por estar trabalhando num lugar onde não se pode trabalhar. Há poucos metros dali, algumas pessoas se reúnem na escadaria do Theatro Municipal de São Paulo.

Nessas mesmas escadas um grupo de pretos e pretas – do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU) – se juntaram em 07 de julho de 1978 para protestarem contra o racismo e a violência policial. Quarenta e um anos depois, o lugar volta a reunir a negritude. Mas não só na área externa. O ambiente todo está tomado. Não apenas na plateia. Os holofotes estão no palco. Emicida é o protagonista.

O terceiro sinal do Municipal alerta que o espetáculo vai começar. Todos se acomodam. Não há lugares vazios. Uma luz amarela sinaliza. A cortina vermelha se abre. O vídeo de “Silêncio” surge. Em seguida um diálogo de duas crianças (que parece ter sido retirada de um filme não identificado) faz a introdução. Minutos depois, o último tapume sobe e evidência os personagens. Emicida veste um conjunto de moletom marrom claro. A blusa tem mangas curtas. Nas costas há uma imagem pintada do Jesus negro (suponho) com uma criança nos braços. Nos pés, usa um Air Force One amarronzado com detalhes em azul marinho.

 

Foto: Jeferson Delgado

 

Concentrado, ele caminha lentamente para o meio do tablado. Abre os braços. Faz reverência. Com “A Ordem Natural das Coisas” a sessão é aberta. Toda de branco, assim como a banda, MC THA chega para fazer o refrão. Ao fim, o samba ecoa no teatro. Os dois interpretam a clássica “Chiclete com Banana” de Gordurinha e Almira Castilho, popularizada por Jackson do Pandeiro. Geral vem junto. Na sequência, o rapper vai para trás de um púlpito com pequenos instrumentos percussivos – de chocalhos à agogô – e rodeado por pés de arruda. Dali, ele inicia “Alegrias da Vida Adulta”. Dá para sentir a leveza. Emicida está à vontade, solto como uma criança no quintal de casa.

“Obrigado por tá junto! Sozinho… a gente não faz nada, irmão”, diz. “Esse é o resultado do sonho coletivo de muita gente que num tá nem encarnado mais. Mas hoje ele estão aqui com nóis, vibrando positivamente”.

Gritos de agradecimento aparecem nos intervalos. Do lado esquerdo do palco, intérpretes de libras traduzem com as mãos tudo que é dito e tocado. Ao fundo, vitrais com artes africanas são projetados. É quase uma igreja. Tudo se conecta. “Cananéia, Iguape e Ilha Comprida” mantém a “good vibe”. Depois dela, alguns sons bem conhecidos de outros discos: “Baiana”, “Hoje cedo”, “Madagascar”, “Zica Vai Lá”. Após essa viagem, as músicas de “AmarElo” voltam ao programa. “9vinha” recebe a participação de Drik Barbosa e “AmarElo” tem a presença marcante de Majur e Pablo Vittar. a histeria vem à tona. E não teria como ser diferente. Gritos, aplausos, assobios. Mas esse ainda não foi o ponto alto. “Ismália” ameniza a situação. É possível ver a emoção nos rostos. Muitos deles cheios de lágrimas. A música bate forte. O interlocutor também se emociona.

 

Emicida, Pablo Vittar e Majur / Foto: Jeferson Delgado

 

Antes de “Quem Tem Amigos Tem Tudo”, Wilson das Neves introduz. Emicida pega uma caixa de fósforos que é tocada durante toda a canção. O samba “A Amizade”, do Fundo de Quintal, faz a conexão. “Valeu por você existir meu amigo”, agradece a Wilson das Neves. Mais um momento marcante. Visivelmente emocionado, ele agradece.

Alguém grita: “você merece”. Essa é a resposta:  “Eu não… nóis. E que a gente não se contente com menos do que isso”.

Na plateia há uma fusão de superfãs, de agregados e de pessoas que foram apenas para ver qual é. Isso fica mais evidente quando as mais antigas pulsam nas caixas, tipo “Levanta e Anda”, “Passarinho”, “A chapa é quente”, “Gueto”. Nessa ultima, Leandro fala: “vocês acharam que a gente não ia mandar essa aqui no Municipal?”. Enquanto uns se empolgam, outros apenas balançam a cabeça. Mas são impactados.

Já perto do final, entram na lista “Eminência Parda” com Jé Santiago e Dj Nyack fazendo a parte do Papillon. “Livre” também vem com potência, cheia de percussão. O fim está próximo, de fato, as cortinas se fecham. O público aplaude de pé por quase 1 minuto. Novamente ele volta com “Ubuntu Fristaili” e fecha com “Principia”. O momento é de celebração. O sentimento, de vitória.

“Séculos atrás a religião foi usada como argumento pra justificar o sequestro de mais de 12 milhões de pessoas do continente africano. Aquelas pessoas foram obrigadas a caminhar cinco séculos ouvindo que eles não tinham alma. Que a noite de hoje traga para cada um de nós a sensação de que hoje nós pegamos a nossa alma de volta. E hoje nós libertamos todos os nossos ancestrais”, encerrou Emicida com punhos cerrado.

 

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