Não é por acaso que Aila Medeiros Dantas é conhecida por Cronista do Morro. Aos 14 anos, ela começou a cantar funk. Anos depois migrou para o rap. Foi neste último que ela se encontrou. Suas poesias, baseadas em vivências, retratam as ruas de Salvador, na Bahia. Porém, essa realidade, envolta de violência, racismo, amor e ódio, se conecta com a de outras cidades do Brasil.
Após diversos singles, shows e parcerias (Duquesa, Zudizilla, Ravi Lobo, Quadro, Mulambo, Badsista), ela estreia com o álbum “UMA POSSÍVEL VINGANÇA”. Como sempre, a caneta de Cronista está bem afiada. A forma que ela passa a visão pode parecer raivosa, mas na verdade é o jeito dela enfatizar sua mensagem, que são complementadas por beats densos de JxvemBlvk e Krr Beats – produtor e beatmaker que faleceu antes do trabalho ficar pronto.
“Eu quero falar do que a gente vive, falar das coisas que realmente trazem essa energia de suporte, de se manter no rap e se manter nesse movimento no circuito do que é Salvador, tá ligado?”, diz ela. “A ideia era mostrar realmente como a gente está vivendo e como estamos lidando com a nossa realidade, que não é tão fácil assim manter uma história dentro do hip-hop nem manter uma carreira”.
Quase que uma filósofa, Cronista do Morro detalha nesta conversa todo o processo de desenvolvimento do seu projeto. Também reflete sobre a falta que o amigo Krr fez ao longo dessa construção, da responsabilidade que tem enquanto agente do hip hop e qual é essa possível vingança que aborda ao longo do disco. “É bem nessa energia de vingar contra o sistema, contra todos esses abusos que são feitos com a gente 24 horas dentro desse Brasil”.
Queria entender como o álbum foi arquitetado?
Então, quando a gente parou pra realmente trabalhar, produzir isso, eu já estava com a cabeça direcionada no que eu queria ouvir, sabe? Estava muito na onda de que tipo de músicas iria parar pra escutar. Abrir o meu Spotify e falar: “nossa, eu quero ouvir essa energia, eu quero ouvir esse tipo de sentimento”. Eu fiquei muito nessa brisa. E quando entendemos o contexto do que estava acontecendo na indústria musical, principalmente no núcleo do rap, a gente estava tipo assim: “caralho, velho, precisamos realmente falar do que vivemos, sabe? Mostrar o que de fato a gente tem enquanto origem, enquanto ancestralidade mesmo, de trazer percussão, trazer o nosso hip-hop, a nossa responsabilidade, enquanto o rap baiano. E, velho, eu acho que a gente partiu pra construção do instrumental e das energias das músicas, a partir dessa ideia. De trazer a nossa identidade pra isso.
De que forma isso aconteceu?
Começamos a produzir as músicas, tipo assim: vamos trabalhar hoje em “Foda-se o seu hype”. Vamos trabalhar hoje em “Revolta a parte dois”. E qual foi o lance? Desde o início, a minha ideia principal era trabalhar isso tudo na TDR (Terror da Leste), que é minha família no rap e hoje no pessoal também. Nesse período começamos a trabalhar nessas músicas… o Krr On The Beat ainda estava entre a gente, ainda estava vivo nesse circuito todo, né? E lembro muito que tipo… eu estava muito ansiosa, querendo executar isso, e falava sempre pra ele: “amigo, não se preocupe, eu vou arranjar um dinheiro que a gente vai fazer essa parada acontecer, tá ligado?” Fazia muito tempo que pedia pra que isso acontecesse, sabe? De ter um trabalho concreto que não fosse só nos palcos, porque quando a gente para pra analisar a minha carreira em si, ela começa nos palcos, sabe? As pessoas que conhecem o meu trabalho é porque foram no meu show, me viram fazendo participação com algum amigo da música, tá ligado? E aí, era esta ideia: vamos fazer uma parada concreta, vamos trazer isso pro mundo, trazer essa linguagem e permitir que o resto do mundo possa ouvir também. E Krr estava muito, muito presente nesse contexto todo. A gente começou com “Revolta Parte 2”, que é: “Oh, Corisco, o Nordeste mandou te chamar / Oh, Corisco”… e aí estava bem no boom do drill, né? A gente pensava assim: “caralho, amigo. Eu quero fazer um drill, mas também não quero fazer um bagulho que tá todo mundo fazendo, sabe? Eu quero falar do que a gente vive, falar das coisas que realmente trazem essa energia de suporte, de se manter no rap e se manter nesse movimento no circuito do que é Salvador, tá ligado? A ideia era mostrar realmente como a gente está vivendo e como estamos lidando com a nossa realidade, que não é tão fácil assim manter uma história dentro do hip-hop nem manter uma carreira. Enfim, estávamos super empolgados, querendo executar de todas as formas. Aí, fomos para o estúdio e lá falava: “amigo, eu acho que não é isso não, sabe, eu acho que está faltando alguma coisa aí, vamos acrescentar uma energia de rock para trazer a ideia da cultura do cangaço, que é uma parada mais densa, mais dark, que reflete completamente a nossa realidade de hoje”. Tudo isso de uma forma mais atualizada, falando de racismo e sobre a violência contra nossa população que vem de muitos anos. E essa luta do cangaço é exatamente nesse ponto. E a minha brisa é que essa música foi escrita depois que eu comecei a entender o Olodum, sabe?
Por qual motivo?
O Olodum tem uma música que é a “Revolta”, e, velho, eu ficava ouvindo essa música desde criança. Também assistia aos filmes nacionais sobre o cangaço e era uma parada bem folclórica e não tinha a real história da coisa. Mas ouvia o que o Olodum estava falando e ficava me questionando. E aí, quando eu realmente comecei a lidar com o hip-hop, eu acho que veio esse despertar, este virar de chave, né? Comecei a pensar diferente sobre as coisas e procurar realmente lugares que iriam me trazer essa informação, de fato, a informação real da coisa, né? E a partir daí compreendi o que o Olodum estava cantando. Entendi… o que era a nossa cultura, enquanto luta, enquanto movimento negro, movimento sertanejo, sabe? Esse movimento do sertão do Nordeste, tá ligado? Nossa, eu comecei a falara para o Krr: “amigo, qual a viagem? Olha essa referência aqui”. Aí, expliquei pra ele qual era o contexto do que eu estava pensando para aquela música. Falei para ele o meu sentimento dentro daquela música, do que eu estava querendo expressar em sI, e ele veio na brisa e arrebentou monstruosamente. Fez aquele instrumental lindo, lindo, lindo, que eu fiquei assim: “nossa, amigo, vamos gravar hoje? Vamos partir logo nessa bala? Vamos já?” Eu estava assim, sabe? Quando gravava música nova, ficava querendo lançar. Aquela coisa, né?
Mas o Krr chegou a ver o disco pronto?
Ele não chegou a ver o disco pronto, porque a gente começou a mexer em “Revolta Parte 2” e depois fomos para “Joga no Paredão”, que é uma que tem uma virada de pagodão ali, né? Ele é completamente responsável por isso. E aí, velho, ele só viu essas duas músicas. As outras, o Krr só via porque a gente fazia ao vivo, sabe? A gente já brincava, tinha um flash ali com essas letras. Tipo assim, não eram todas que fazíamos ao vivo, mas a maior parte das músicas que estão no disco é o que já tinha trabalhado na pista, tá ligado? Então, ele via só essas formas de ser ao vivo. Mas não a parada realmente concreta, assim, com a cara, com todas as ideias exploradas para trazer ao mundo, sabe? Ele não conseguiu ver, não. Mas, velho, eu acho que, tipo assim, depois que eu passei nesse processo de aceitação, porque é muito difícil… a gente teve forças para produzir o álbum. Os dias no estúdio estavam sendo marcados, quando aconteceu essa tragédia, tá ligado? Ficamos sem chão por um mês, pensando e tentando recalcular as coisas e lidando com todo o sentimento, né? E a gente ficou nessa loucura porque Krr era a pessoa pra produzir tudo isso porque ele já entendia o meu trabalho, já entendia como é que funcionava pra mim, sabe? Não seria algo difícil de executar. E aí, ficamos sem chão, sem rumo, sem saber… sem saber quem chamar, porque a nossa intenção era… trabalhar com pessoas periféricas e principalmente com produtores da cidade que não têm tanta visibilidade assim, mas são extremamente talentosos e originais no que fazem. Ficamos nessa pesquisa e você sabe que não é uma pesquisa tão simples, a gente não chega ali no Instagram, procura e acha, sabe? A gente ficou uns 3, 4 meses pra começar de fato a trabalhar no resto das músicas. Quando Krr faleceu, ele deixou essas duas músicas pra mim já prontas, né? A gente trabalhou e finalizou certinho. Depois desse processo, apareceu o JxvemBlvk (Jovem Black), que é o cara que produziu todas as outras músicas, sabe? Então, JxvemBlvk produziu oito músicas desse aqui. Eu conversava com ele e falava, amigo: “ó, eu tenho os meus processos de criação que ele não é muito pelos termos técnicos, mas eu acho que na constante sobre sentimento e energia a gente vai conseguir desenvolver… então, eu preciso que você acrescente um samba reggae na parte dessa faixa aqui nesse momento, porque o contexto da música é esse”. Então pra mim era muito mais prático ter este tipo de diálogo, de explicação. Se a gente está falando sobre ancestralidade, nosso território, nossa identidade, eu quero que traga elementos, não precisa ser diretamente algo do que está acontecendo agora, mas que fosse do contexto, que trouxesse essa conexão. E foi muito sinistro porque a referência de Corisco e da música do Olodum estava todo mundo assim: “Vamos por samba reggae, vamos por samba reggae, vamos fazer isso”. Falei não galera, não é essa ideia, sabe? A proporção do que a gente fala da energia, da sensibilidade de Corisco enquanto força, enquanto a persona que o Olodum traz, enquanto vingador, sabe, toda essa dor é para manter de fato a ideia da dark. A sobrevivência, a luta, a guerra do que foi aquilo. Temos que trazer para a nossa realidade, trazer para os momentos atuais, que não tem nada de diferente, sabe? Quando vocês saem na favela de Salvador, meu parceiro é tipo assim, por dia, quase 20 jovens negros morrem nessa cidade, tá ligado? Então, quando a história é para a nossa realidade, a gente sempre está lutando por território, lutando por mais espaço, sabe? Então, é uma luta que é muito velha. O contexto de Corisco era para trazer essa imagem, trazer essa grandeza do que é a história do sertão, o movimento em si. Eu falei: “amigo, quero fazer um funk, quero fazer um funk, porque… eu comecei pelo funk”. Eu queria muito fazer um funk há muito tempo, só que… estavam os bagulhos estourados, uma parada que eu não curtia, sabe? E eu estava num momento de querer escrever muito… velho, não queria fazer uma parada que fosse só… ostentativa, sabe? A gente pode até ostentar de certa forma, mas… é de um contexto consciente do que a gente está fazendo.
“UMA POSSÍVEL VINGANÇA É MUITO NESSE CONTEXTO DE QUE PODEMOS SER O PRIMOGÊNITO DENTRO DA NOSSA FAMÍLIA OU DENTRO DO NOSSO QUERER MESMO, PARA VINGAR TUDO ISSO, PARA RESOLVER TUDO ISSO”
Tem que ter uma certa responsabilidade…
… por isso, a gente foi trazendo essas referências de formas distintas dentro do processo de produção do álbum, tanto o pagodão, tanto o funk com o samba reggae. Tudo veio nessa ideia e no contexto de: precisamos trazer também a ideia e a forma que Salvador faz rap. Porque se a gente parar para analisar… O rap dentro do Nordeste é muito antigo, né? Não é porque não era cantado em uma batida de rap que deixa de ser um verso de rap, de hip hop, sabe? Então, quando a gente analisa esse ponto de pesquisas, a gente tem outras referências para dialogar no contexto do hip-hop, no mundo do hip-hop. E o rap baiano é muito versátil nessa perspectiva, sabe? A Bahia em si se alimenta, se nutre em coisas ancestrais, de sentimentos ancestrais, de percussões, sabe? Até mesmo a guitarra baiana, quando você vai analisar, é um contexto completamente ancestral, sabe?
É o lance de trazer uma identidade e realidade local que também se conecta com o todo? Vai bem nesse direcionamento de falar de uma vivência que se conecta com outras ao redor do Brasil?
E esse lugar aqui, tipo assim, no final das contas, a gente entende que não é só sobre beleza que Salvador se torna potência, sabe? Não é só sobre o campo do turismo que Salvador se torna uma potência, é exatamente por essa luta que acontece por trás de tudo isso. Que a população realmente mantém esse arquétipo cultural, sabe? Esse primor do que é nascer no berço da cultura, da coisa assim, do axé, de ter muita percussão, de ter muito movimento, da gente olhar para a dança e entender que a dança também é uma forma de linguagem, entendeu? Então, tipo… é uma responsabilidade muito grande falar do contexto e tentar criar um contexto sobre Salvador, exatamente por esse fato, por esse ponto histórico da coisa toda, sabe? Mas o que é entendível pra gente é que, tipo assim, independente do lugar que seja, dentro do Brasil, a gente enquanto pessoa preta vai sofrer dessa forma ou de forma mais violenta, sabe? Então, independente do que a gente estivesse falando, mesmo que fosse sobre, sei lá, amor, eu acho que entraria nesse contexto enquanto pessoas que se enxergam, pessoas negras que se veem, independente do território. A gente trouxe essa identidade do nosso território exatamente pra escrever que não existe essa proteção, independente do lugar que você esteja no Brasil porque a cultura vai ser sempre essa e é um lugar que a gente só tem que realmente entender, analisar, para saber se mover, para saber como realmente vem essas demandas impostas, essas demandas que são acometidas. Esses sofrimentos que também são acometidos pelo Estado. E aí, é muita essa responsa de tentar conversar com o resto do país, sendo que a gente tem todo esse problema de xenofobia, todo esse problema de território, de assédio, sabe, de exclusões, tá ligado? Então… velho, eu acho que no final das contas a energia de Krr sempre esteve presente também dentro desse processo de produção por conta disso, velho. Salvador não é só essa cidade linda. Mas ainda assim, é todo esse sofrimento que ocorre nessa cidade que mantém esse ciclo vivo, sabe? Essa beleza viva. As pessoas que sofrem, que querem ter um dia melhor, ter uma beleza para olhar enquanto todo esse sofrimento. E aí, caralho… Eu acho que é esse o contexto, velho.
Vocês também decidiram ir para uma linha para falar da realidade, né? Porque hoje no rap atual a gente ouve muita utopia, desejos e muitas coisas que não condizem com a realidade. Nas suas letras tem uma realidade e coloca as pessoas dentro dela. Obviamente, é necessário ter coisas, mas primeiro a gente tem que olhar para isso aqui, para esse problema que está acontecendo e como que a gente vai fazer para resolver isso?
Sim, Nossa… estava em uma palestra no interior aqui da Bahia numa mesa que dividi com Nelson Maca. A gente estava nesse papo de hip-hop em movimento. E aí, um rapaz fez esta pergunta: “o que nós esperávamos do futuro do hip hop, já que hoje em dia as pessoas só querem falar de ostentação?”. A pergunta foi bem profunda. E aí, a gente se olhou e basicamente começamos a conversar. E foi uma linha de raciocínio muito próxima, sabe? Muito parecida. Ele na realidade dele, enquanto homem negro, que é uma ferramenta desse movimento há muitos anos, e eu na minha geração, ou das minhas voltas, enquanto artista do hiphop também, dentro dessa atualidade, dessa geração… a indústria tenta esvaziar as nossas falas, as nossas realidades, enquanto história brasileira, enquanto rap nacional. Para mim, o meu primeiro contato com o rap nacional me trouxe nesse lugar de pensar diferente, de olhar para minha realidade e entender de outro jeito, sabe? Porque desde criança eu vi o tráfico acontecendo na porta da minha casa. Eu conhecia todos os meninos que se envolviam no tráfico, porque a gente convivia junto quando era criança, sabe? Mas quando eu comecei a entender que tudo aquilo era cometido, me colocou nesse lugar de: vamos pensar? Hoje eu adoro filosofia porque o hip hop me impulsionou a chegar nesse lugar. A gente entrou numa questão de que no final das contas hoje em dia as pessoas estão fazendo mais música do que rap. É algo que precisa entrar na indústria, o desespero de querer viver uma vida milionária, porque isso é entregue como algo bom, como uma solução, né? A gente vive nessa luta de todo mundo querer ter um super-heroi, de as pessoas acharem que a solução está em um lugar só. Eu acho que é um ponto que vai sempre ocorrer dentro do hip hop, sabe? Ou porque a indústria tem que manter o poder dela de dizer o que ela acha interessante e o que não acha. Mas a gente, enquanto ferramenta do hip-hop, estamos trabalhando de forma completamente contrária, esse ponto de ideal sobre educação, sobre novos horizontes, novos ideais, novas perspectivas. E, velho, eu acho que é muito mais resposta do que dúvida, o que está acontecendo com o rap, sabe? É muito mais resposta porque a gente só precisa olhar para a realidade e pôr as coisas na prateleira certa, pôr as coisas no lugar certo, entender de fato quem tem responsabilidade com isso, quem está realmente lutando para que tenha uma melhora no futuro, não que você falar sobre suas suas vontades, suas fantasias seja errado. Você lê um livro sobre uma parada completamente aleatória, e vai criando ali na sua cabeça uma resposta pra uma coisa, uma resposta pra outra. Só que o rap, enquanto literatura de oralidade, existe essa responsabilidade da base, da base, da base.
Quando você começa a ouvir rap nacional, entende a sua realidade, entende sobre a sua autoestima, tem novas referências para ter uma perspectiva de vida. E o hip hop, para mim, foi esse lugar, esse ambiente, sabe? E, nossa, me trouxe, me fez ser essa pessoa que eu sou hoje, de querer mais, de querer sempre evoluir. Não importa o que esteja acontecendo, eu quero mostrar a minha versão do que eu acho, do que eu vejo, tá ligado? Então, tipo assim, não é que a gente tenha que ter dúvida do que está acontecendo no hip hop atual, sabe? Desse domínio da indústria. Não é que a gente tenha que ter medo ou dúvida. O lance é a gente realmente olhar a realidade, lidar de fato com o que está acontecendo e tentar mudar, assim como a gente lutou desde o início para o rap aparecer nas rádios, para o hip hop aparecer dentro de, sei lá, de uma pauta digital, está sendo algo muito novo, quando você vê a perspectiva de Salvador… enquanto essas empresas, esses apoios financeiros… ter a gente quanto profissionais da arte, profissionais da cultura, é muito difícil, sabe? Então, eu acho que o lance é, as pessoas que realmente têm essa visão, estão entendendo a diferença e como se compõe o movimento de hip hop, tem que de fato trazer esse olhar, tá ligado? Ser realista: ó, isso aqui é música, é música, ok? Hip hop é outra parada. Não desmerecendo qualquer outro gênero. Mas a responsabilidade que se tem em rima e poesia é absurdamente transformação social, é absurdamente literatura, sabe? E aí o hip-hop é a nossa bíblia. Ele documenta vários períodos da história do Brasil, em linguagens, flows e métricas diferentes. A gente consegue ter uma ciência do que aconteceu em certo período lá no Rio de Janeiro. A certo momento em São Paulo com,Racionais dando ideia. Véi, você vai ouvir o MV Bill, você fica assim, nossa: Rio de Janeiro, meu Deus, o que é isso? É outra realidade, não é só aquilo que aparece ali na Globo, sabe? Não é só aquela beleza toda, assim como Salvador não é também, entendeu? Então, eu acho que para as pessoas que compreendem essa diferença… é porque eu odeio essa divisão do mainstream e do underground, mas é de fato a realidade que se tem. Não tem como criar um novo conceito pra essa coisa. Mas a diferença disso tudo, quando a gente para pra analisar, é investimento de dinheiro, sabe? É só capital. o hip hop, falando assim diretamente sobre o rap baiano e seus componentes, as suas ferramentas precisam entender como é que se profissionaliza, como é que faz para lidar com essas empresas, como é que essas empresas vão enxergar a gente como profissionais…
Você já entendeu como é o funcionamento dessa máquina?
Quando a gente entendeu isso, a gente começou a lutar, a correr atrás, sabe? De fato, de lidar com pessoas que não põe nessa possibilidade de rap ser um fomento, do rap e do hip hop ser uma linguagem literária. As pessoas não põem a gente nesse lugar, então ainda assim é uma luta, tá ligado? E pra gente que enxerga essa divisão, essa diferença, é bom trazer pra nossa realidade e expor essa visão, tá ligado? Porque sempre teve isso no rap, sempre teve isso no hip hop. Tipo assim, das pessoas acharem que é só fazer uma rima e virar, fazer alguma coisa pop que dá certo, tá ligado? Ah, tá no mesmo contexto de que a gente tá no momento das redes sociais, das coisas rápidas, das informações rasas. Então, tipo assim, é claro que todo mundo vai almejar uma vida melhor, vendo uma milionária de todos os dias postando sobre que está ganhando num jogo de azar, sabe? Uma milionária fingindo que está milionária por conta de um jogo, que está jogando aquilo. Então, tipo assim, essas ideias são empregadas o tempo todo. Então, pra gente que é responsável, a onda é pôr a visão na mesa e espalhar isso da forma que dá, sabe? Não existe uma fórmula para melhorar o hip hop. Eu acho que existem vários artistas que estão dentro desse circuito de responsabilidade, desse lugar de entender o que é realmente o movimento hip hop. Mas, enquanto isso, vamos ver, intermédios e atravessos de algumas empresas, e algo que é referente à indústria, que tem muito dinheiro envolvido, tá ligado? E aí, despoca nosso olhar, esvazia nossos ideais.
“O RAP DENTRO DO NORDESTE É MUITO ANTIGO, NÉ? NÃO É PORQUE NÃO ERA CANTADO EM UMA BATIDA DE RAP QUE DEIXA DE SER UM VERSO DE RAP, HIP HOP”
Qual a ideia por trás do título do álbum, “Uma Possível Vingança”. Que vingança seria essa?
A ideia inicial para título do álbum era ”A Face de Uma Possível Vingança”, porque, qual a fita… a gente enquanto pessoas negras dentro do Brasil perdemos muitas posses de terras porque foram doadas para alguns europeus por aí. Se você analisar quantos italianos tem terra no Brasil, você fica assim: “é absurdo, e tem gente que nem vive no lugar”. Tem uma parada que é muito velha sobre as nossas terras. A ideia de ser a face de uma possível vingança é que os italianos sempre têm medo do primogênito. Quando era a época de guerra, eles matavam o pai e matavam o primogênito. E aí, tipo assim… eu vim nesse contexto de uma possível vingança ser concebida pelo hip hop, sabe? Dessa ideia, desse ideal dentro da minha vida, vi também muito pela força do hip hop. Então, a minha vingança mesmo era contra todos esses acometimentos, essas situações que abrigam a luta externa do social, afeta no nosso pessoal, tá ligado? E era o meu momento de falar realmente o que eu tinha vivido, era o meu momento de falar sobre acontecimentos de pessoas que não estão mais em vida, sabe? Eu contei muitas histórias de amigos meus que morreram, muitas vivências que… ah, eu sou uma mulher negra lésbica, então, tipo assim, na maioria dos sofrimentos que eu tive enquanto confronto na força do Estado com a minha pessoa, sempre fui tratada no masculino, sabe? Então, tipo assim, um policial masculino veio me abordar, veio me revistar… é uma ideia que vem pra resolver o meu pessoal, de desabafar, de poder falar sobre tudo isso, e também vem pelo intermédio de conexão. Eu sinto que tem muitas pessoas que também vivem esse contexto que não pode ser falado, que não pode ser conversado por conta de traumas, tá ligado? E aí, a intenção de ser uma possível vingança é que essa vingança não fosse apenas eu matando os meus demônios, lidando com os meus demônios, sabe? É a intenção que seja algo coletivo e enquanto a gente estiver ouvindo o ponto de mixagem de uma faixa pra outra, de já querer entrar naquela nuance e falar: “será que isso aqui é real? Nossa, eu vivi algo parecido, mas será que ela viveu?”Então, (o álbum) é bem nessa energia de vingar contra o sistema, contra todos esses abusos que são feitos com a gente 24 horas dentro desse Brasil. E Salvador costuma ser bizarro, porque assim, eu estava ouvindo um amigo meu falando, antes de tirar a face e deixar uma possível vingança, tinha um amigo meu falando que em São Paulo quando tem um policial negro, a gente fica até de boa porque é um policial negro e vai entender que a gente é negro também. Aí, eu falei: “porra meu parceiro, você vai em Salvador e o bagulho fica doido. Não tem essa de policial negro, policial branco não, é a mesma fita”…
… pode até parecer, mas em São Paulo é a mesma coisa não tem essa diferença não. Muito pelo contrário, é até pior.
Eu sem entender o contexto da parada, porque eu sou cismada. Pra mim qualquer um é qualquer um, independente da cor. Mas assim quando eu vi isso, eu falei: “porra que parada. É outra ideia, mas em Salvador, a maioria da população é negra, não tem como botar essa balança e ficar dizendo que isso vai ser bom ou ruim”. E aí, uma possível vingança é muito nesse contexto de que podemos ser o primogênito dentro da nossa família, ou dentro do nosso querer mesmo, para vingar tudo isso, para resolver tudo isso, do que seja nossos problemas sociais, dos nossos problemas pessoais, sentimentais, tá ligado? E aí veio essa ideia, porque não era algo que falasse só sobre mim. Então tem muitas vidas, tem muitas histórias dentro dessa obra inteira. E aí veio essa uma possível vingança para ter essa conexão, das pessoas realmente me enxergarem enquanto comunicadora do movimento, enquanto estou me movimentando, a forma que eu estou tratando isso carinhosamente. Eu passei por muitas coisas até conseguir lançar esse álbum. E aí quando eu paro para analisar o significado que ele tem para mim hoje, depois de realmente conseguir lançar, de ver as pessoas ouvindo e tendo uma reação sobre isso, para mim, eu acabo me vingando de tantos apesares, tantos sofrimentos, tantos nãos que eu ouvi. Antes de lançar, eu queria ver só sangue. Mas hoje eu vejo ele com outra perspectiva.
É uma forma de colocar pra fora tudo isso e de não fazer essa vingança de uma maneira tradicional, de partir por ataque, mas colocar isso pra fora e mostrar todas as suas indignações, raivas e tudo mais…
É, tá ligado? Eu queria mostrar minha inteligência, sabe? Mostrar o que eu posso fazer também. Eu queria muito essa parada e isso me toca no lugar de quantas pessoas puseram a minha inteligência pra baixo quando eu questionava algo. Quando eu pontuava algo, a minha inteligência era sempre uma dúvida. Eu também quis dar uma brincada, né? Porque, tipo assim, a gente é preto de favela, mas não quer dizer que a gente é burro, que a gente não sabe se comunicar. E a oralidade é algo que está presente na nossa estrutura de vida, de pessoas negras há muitos anos.