Caro Baco,
É 2018 e eu estou te escrevendo uma carta. Eu sei que dizem que não se escreve mais cartas, que as pessoas não leem mais; eles querem matar as palavras, mas eu quero ler tudo o que tu tens a dizer. Eu te conheci quando tu fez uma diss pro eixo sul do País, colocou junto com Chinaski o nordeste no mapa do rap e eu achei aquilo simplesmente incrível. Ouvi muitas pessoas criticando o ataque ofensivo – e eu só consegui pensar qual tipo de rap elas já ouviram. De carinhosa, só a facção que integras. Eu te vi pela primeira vez no Rio Vermelho, em Salvador. Tinha brigado com meu ex-namorado e fui sozinha te assistir. Roda punk de lavar a alma. Lá, eu entendi: nem todos vão te entender. Foi uma celebração divina. Eu senti toda a ancestralidade que há em ti suscitar em mim. Eu acho que tu tens esse poder. Esú foi muito inovador. Um marco não só no rap, mas na música brasileira. Religião de matriz africana, etnicidade, angústias de ser/estar entre a divindade e a humanidade. Uma obra de arte.
Eu conheci blues com meu pai. Meu pai é blues. É melodia, melancolia, é resistência preta. Tu nem imagina a ansiedade que eu estava pelo teu novo álbum, principalmente à medida que publicavas as fotografias de Helen Salomão nas redes sociais. Preciso te dizer, de antemão, que tenho um amor platônico por ti. Eu sei muito pouco sobre Diogo e, sinceramente, nem sei se quero saber. Baco é arte. Baco é povo. Baco é pretos no museu antes mesmo de “Apeshit” de Beyoncé e Jay Z. Como girassóis de Van Gogh: agora não é só Baco que conhece, agora muita gente conhece e eu amo isso; música também é inspirar conhecimento.
A quantidade de referência presente no teu conteúdo lírico é o que mais me desperta atenção em ti. Eu curto tua honestidade – “se eu minto para mim imagina pra você, meu bem” – e a gente sabe que rappers mentem sempre – mas também a coragem de colocar em pauta a relação de homens com sua saúde mental e seus sentimentos. Tu és muito necessário nesse sentido: quando mesmo com autoestima de uma divindade, se admite falho. Humano. E pode ter certeza que tem muito mano se fazendo de durão, mas, no fundo, entendendo o peso de falar de lágrimas de um preto.
Falei das flores. Agora, preciso te falar sobre as produções de Blvesman.
Eu senti falta de um caráter mais experimental. Quando li que haveria um feat com o grupo underground curitibano Tuyo, pensei: esse som vai ser insano. Mas, sinceramente, achei mal aproveitado o talento vocal original do grupo. Mesma coisa em “Me Desculpa, Jay Z”. A mixagem da voz linda da 1LUM3 ficou confusa quando se mesclou com a tua. As músicas mais fodas pra mim foram Preto e Prata, Minotauro de Borges e Kanye West da Bahia, justamente por apresentarem beats com variações e o modo que os vocais foram apresentados. Kanye tem um entendimento da voz também enquanto instrumento. Essa concepção é massa, porque transmite que não necessariamente precisa-se saber cantar, mas pensar em outras formas de entonar e mixar.
Baco, não dá pra ignorar o que está acontecendo no cenário do rap atual, ao nosso redor e, assim como temos muito a aprender com outros gêneros musicais, a gente precisa entender a magnitude do trap para além do estigma de menção à drogas, armas e ostentação. O trap também vem salvando vidas e revelando o talento de muitos jovens pretos (Aka Rasta, Delatorvi, KK Ousado, Emersxxn, assim que eu bater o ponto e parar de chegar atrasada no trabalho, eu vou escrever sobre vocês). As produções têm soado realmente inovadoras e muito além de “som de gringo”. Eu realmente acredito que tu tens que ouvir meus amigos. Vennessy, Mahal e Romano estão muito raros no que vêm produzindo, mesmo com pouco recurso. E mesmo que eu não tenha propriedade técnica para dissertar mais sobre isso, eu sei da tua capacidade em reconhecer e imprimir tua ousadia e originalidade também nas produções.
Mas pode desconsiderar tudo isso. Talvez eu só queira um feat contigo.
Assista BLUESMAN, o filme
Indicamos também: Entrevista | Djonga: “Eu gosto de ser o criador, no sentido de me desafiar”. Leia aqui.