Kombat
Argument
Wear
EXtreme
Em tradução livre, “Combate e argumentos numa guerra extrema”.
Era 2018, eu rolava despretensiosamente a timeline do Facebook quando li o título “Pra quem não me conhece, Kawex”, uma web reportagem de Caio Castor pela Agência Pública. Assisti duas vezes a reportagem, ao fim, tive certeza absoluta que aquele era um vulgo extremamente exato pra caracterizar a personalidade e vivência de Antônio Carlos Nascimento. Pele negra reluzente, olhos penetrantes e uma lírica cortante como espada de dois gumes. Foi praticamente impossível não ficar impressionada, o sujeito notável me emocionou. Mais que isso, me intrigou. Me questionei porque ainda não tinha descoberto sua existência antes. Pareceu absurdo não conhecer Kawex até então. E era.
A caminhada de Antônio ficou conhecida após em 2017, viver junto de outros rostos, o drama da violência policial que pretendia higienizar o fluxo da região da Luz, conhecida de forma pejorativa como Cracolândia. Ele enxergou no rap um meio de cura mental e transgressão social, lançou o rap “São Paulo à noite, o mundo se divide em dois” e de lá pra cá vinha ganhando atenção pela lírica, rimas afiadas, voz potente e pela semelhança com Sabotage.
Fomos atrás de Flávio Falcone, psiquiatra e palhaço que nos contou detalhes da vida de Kawex nesse plano. Flávio contou que em seu primeiro dia de trabalho com a palhaçaria na “Craco”, Kawex foi a figura principal para garantir a sua sobrevivência, os frequentadores da região acreditavam que ele pudesse ser algum policial disfarçado. Foi então que com um pandeiro na mão e invocando um ponto de Seu Zé Pilintra, Kawex foi o primeiro a se aproximar do médico respondendo em canto ao “boa noite” de Seu Zé.
Flávio nos disse ainda como Antônio teve papel fundamental na defesa do Programa ‘De Braços Abertos’, criado durante o mandato de Haddad no Estado de São Paulo com o intuito de combater o uso de drogas de forma humanizada.
Lembrou que Kawex foi escolhido a dedo junto de outros frequentadores da “Craco”, a ser porta-voz entre a comunidade e o poder público e que sempre que podia, articulava sobre o que julgava ser melhor pra região.
“O Kawex não cantava só rap, Kawex foi uma liderança política que conhecia a Craco como ninguém.” — Flávio Falcone.
Natural da Bela Vista, o único aluno negro em sua sala de aula.
O pai trabalhava como mecânico no centro da cidade e prezava muito pela educação dos filhos, Kawex chegou a estudar no Liceu Coração de Jesus, um colégio localizado nos Campos Elíseos e renomado entre a elite paulistana. Uma situação familiar bastante estruturada, até a chegada do Plano Collor em 1990. Após o grotesco e perverso confisco da poupança, seu pai acabou sofrendo um infarto que o levou ao falecimento.
Ainda muito jovem, Antônio se encontra no dilema de milhões de jovens negros, se vê no papel de responsável pelo sustento familiar. Infelizmente, acabou se envolvendo com o tráfico de drogas e acaba pegando a sua primeira cadeia. Após ser solto nunca voltou para casa por vergonha e foi morar na “Craco”, onde desenvolveu a questão do vício.
Flávio nos conta que durante sua passagem por detenções como o Carandiru, Kawex teve seu primeiro contato com o rap e também com o código penal. Disse ainda que enquanto detido, estudava as leis e invocava de forma independente seus próprios direitos.
Retaliação do Estado
No ano de 2015, Antônio foi preso por desacato ao tentar impedir que policiais e funcionários de Estado, sem ordem judicial, invadissem um prédio que fazia parte de um programa de apoio social. Kawex sempre soube de seus deveres e direitos, e bater de frente contra a injustiça armada era quase uma questão de honra. Em pouco tempo e de forma muito natural, ele se tornou símbolo na luta contra a repressão policial no centro da cidade.
Em 2018, Antônio foi novamente preso a caminho de uma apresentação teatral na Lapa. O motivo: a falta de pagamento da multa da primeira condenação por desacato. O caso recebeu grande repercussão, pois era inaceitável a cobrança de um salário mínimo a um morador em situação de rua.
É notável que Kawex sempre foi fortemente perseguido pelas figuras do Estado, ora por sua postura de combate à violência e repressão aos seus, ora por sua eloquência política. Para as estruturas de poder do Estado é de um incômodo extremo, que figuras marginalizadas sejam detentoras de conhecimento e possuam gritos de liderança.
A voz de Kawex foi uma arma que de fato disparava argumentos em meio a injusta guerra extrema criada ao seu redor.
De maneira oposta ao caos da cidade e das diversas abordagens violentas, Kawex faleceu aos seus 53 anos. Uma partida em paz, dormindo e sem guerra. Deixa sem sombra de dúvidas uma contribuição gigantesca no combate a brutalidade policial contra a população de rua, usuários de drogas e pessoas pretas.
Matéria e entrevista por Marina Gabriel, publicado originalmente no Protagoniza por Marina Gabriel. Imagens: Acervo Pessoal Flávio Falcone
Revisão de texto: Eduardo Ribas.