Se no sábado [leia aqui], a chuva ia e voltava, no domingo, 3, ela decidiu ficar de vez. Nem por isso, as pessoas deixaram de comparecer na Estação Cultura de Campinas para acompanhar o segundo dia da 3ª Virada Afro-Cultural. O aguaceiro não tirou o brio da tarde, que apesar de cinzenta estava agradável. Por causa das intempéries do tempo, cheguei um pouco depois das 14h. No palco, BAB desferia rimas para bater na cara do machismo e mostrar a capacidade que as mulheres têm para fazer o que bem entenderem. A voz grave marca, assim como o figurino dark, no melhor estilo rockstar. De personalidade, ela é uma das MC’s do interior de São Paulo que precisa ser acompanhada bem de perto. Tem muito o que dizer para quem precisa ouvir.
“Foi o dia em que eu finalmente realizei no plano físico aquilo que eu, a mais de um ano, tinha idealizado no plano astral, e vinha desde então trabalhando pra acontecer”, escreveu ela. Que presente, foi tudo tão incrível”.
O tempo de cada apresentação durou em média 30 minutos. Novamente, a diversidade serviu de mote. Rap, samba, vogue e afrobeat se alternaram ao longo da programação, que ainda tinha uma feira afro-literária, roda de conversas e vendas de produtos de empreendedores negros. Quem conferia todas essas atividades teve de dar um tempo para ver e ouvir a cantora Bia Lourenço por volta das 3 da tarde. Assim que começa a soltar a voz, as pessoas se olham, comentam e aproximam-se. É como se ela tivesse um imã levando todos em sua direção. A proposta do show é fazer uma homenagem ao sambista baiano Oscar da Penha, o Batatinha (1924 a 1997). Mas essa ode foi para além do samba. Passou pelo jazz e chegou ao blues.
“Ele era considerado diferente no samba da Bahia, porque tinha uma harmonia muito sofisticada. Ele é menos aquela coisa do cavaco, das harmonias… e o curioso é que não tocava nada, fazia tudo de cabeça dele”, diz Bia sorridente após apresentação. “Só que a sonoridade dele perpassa pelo blues de uma maneira muito elegante. Eu acho que consegui fazer com muito respeito, pedindo licença pra casar esses dois estilos”.
Resgatar obras desse compositor brasileiro, que esta geração precisa conhecer, já era um plano dela há um bom tempo. A Virada serviu de ponto de partida para a essa viagem pelo repertório do Batatinha, que se junta às canções autorais da cantora que tem uma voz alegre e viçosa, mesclando tons de Elza Soares com Billie Holiday. Até quando fala sobre as próprias canções, Bia cita o artista baiano como fonte de inspiração porque ambos falam de sentimentos e fazem desabafos. “A minha composição é sempre uma dor ressignificada, é sempre um processo meio confessional até”. Essas experiências também estarão presentes no EP que ela está planejando, “Hoje Você Vai Virar Música”. “Tem muito a ver com as dores de relações e dores ressignificadas mesmo”, observa. “Eu componho muito à noite, sozinha, no piano, a hora que foi todo mundo dormir, que o ambiente tá mais silencioso. ‘’É assim que vou organizando esses processos”.
Seguida por um violão e percussão, que transitava entre pandeiro, tamborim e cuíca, Lourenço fez o corpo arrepiar ao transformar um samba em blues. Fez com delicadeza, pompa e muita paixão. Mesmo emocionando com toda sua habilidade, a cantora e compositora lembrou de um tempo que não se achava tão boa cantando.
“Aí tem a ver com esse processo do racismo estrutural, da síndrome de impostor que a gente, pessoa preta, tem. A gente sempre acha que é bom, mas ainda nunca chegou onde tinha que chegar, tinha que estudar mais um pouquinho, tinha que se preparar”, revela. “Eu canto faz muito tempo, eu fiz faculdade de música, eu sou formada nessa área, mas levou muito tempo pra eu acreditar que tinha potência pra estar nesses lugares, entendeu?”
Os pensamentos que Bia Lourenço tinha (e superou) não são casos isolados. Faz parte da realidade de muitos artistas negros, que mesmo com talento não reconhecem a própria capacidade. É por isso que os espaços de valorização são importantes, mas estão cada vez mais escassos. Sophi que se apresentou antes de Bia, diz que essa oportunidade para “gente que é artista independente é gigante”. De voz doce, direcionada pelo R&B, ela usa a poesia para falar de amor, relacionamentos e situações cotidianas, que nem sempre possui o romantismo almejado.
“A gente sabe que toda vez que liga o jornal, algum dos nossos está morrendo”, reflete. “Tem aqueles que tentam entrar na faculdade e não conseguem, porque o sistema é difícil, e nosso maior inimigo… então, eu tento escrever com base nisso, baseado no que o meu povo vive. Eu acho que viver e ser quem eu sou está me inspirando demais a entender que a gente muda quando se torna adulto. a gente muda e começa a ver o mundo de outra forma, começa a entender o que o sistema quer que a gente faça”.
No ponto de vista dela, a melhor forma de ir bater de frente contra o sistema é “escrevendo, cantando e fazendo arte”, porque “a arte é uma coisa que o sistema não gosta, por isso sempre vai tentar apagar, mas a gente está em festivais, fazendo fotografia, grafitando, movimentando a rua”.
Essas perspectivas também foram levantadas pela rapper Bandida Fina e o Afrogueto. O rap de ambos reiterou a necessidade de resistir e lutar contra as armadilhas citadas por Sophi. A sambista Ilcéi Mirian, historiadora e uma das primeiras cavaquinistas de Campinas (senão a primeira), fez uma roda de samba cativante, assim como o seu sorriso, que facilmente poderia ser feita no chão, como as rodas tradicionais, tendo todos em volta.
Quase no final da tarde, o tablado virou passarela para o desfile vogue da Internacional Real Casa de Babilônia, fundada em 2021 pela Mother Majestade Babilônia, e que se tornou um símbolo de resistência e celebração da cultura periférica e ballroom. Mais que dança, poses, looks e maquiagens, o coletivo enalteceu a essência, beleza, força e representatividade da comunidade LGBTQI+, preta e favelada. Esse tipo de performance quase nunca tem espaço fora do cenário em que é manifestada, seja por falta de oportunidades ou boicotes em eventos públicos, como aconteceu no festival Bicuda. É necessário considerar que a Virada Afro-Cultural estava aberta para a circulação de pessoas de todas idades, dando acesso gratuito à cultura preta e periférica, e fomentando a pluralidade artística da região de Campinas.
Próximo às 20h, com alguns atrasos e a performance da DJ Majestade Babilônia cancelada por causa do horário, a Funmilayo Afrobeat Orquestra começou um dos shows mais esperados do segundo dia. Com “Ondina”, cantada pela também guitarrista Jasper Okan, abriu os trabalhos do jeito que todo mundo gosta: muito suingue, dança e aquela ginga que só encontra no Brasil. As 11 instrumentistas e uma bailarina, fizeram o baile com músicas do álbum “Funmilayo”.
A escolha de uma banda formada completamente por mulheres, em sua maioria negras, que toca um dos gêneros musicais que ao mesmo tempo faz dançar, e é reconhecido pelas músicas carregadas de letras de protesto, amarrou as conceituações da Virada. Ao olhar em redor, os corpos reagiam ao som que ecoava com fervor. Cada qual ao seu jeito. Bonito, quente, forte, representativo, o concerto deixou um gosto de quero mais. Quem ainda não viu, deve fazer isso com urgência.
Depois da efervescência da Funmilayo, a terceira edição da Virada Afro-Cultural seria encerrada com o Ruffneck Sound System. Porém, teve de ser suspenso por causa dos atrasos. Houve uma tentativa de alocar a DJ Majestade Babilônia dentro do horário da Ruffneck, mas não houve consenso, e o horário já estava adiantado. Assim, o evento se encerrou. Quem aguardava para ouvir as diferentes vertentes da música jamaicana não saiu satisfeito. Obviamente, essa não é a primeira vez que esse tipo de problema acontece em um festival. Também serve de aprendizado para as próximas edições. Um ponto fora da curva não pode tirar toda a potência de 2 dias de festa, reafirmação, tomada de território e resistência.