Rincon Sapiência, também conhecido como Manicongo (certo?), é um dos precursores da fusão de afrobeats com o rap, quando o estilo nigeriano ainda estava em baixa no Brasil. “Nessa mistura toda eu fiz “Ponta de Lança”, “A Coisa Tá Preta”, “Afro-Rap” e boa parte do meu trabalho”, disse ele dias depois de apresentar o single “Eu não tenho mais tempo”. Dessa vez, é o trap que faz a base para que o MC exponha suas visões e críticas sobre o atual momento do rap BR, com o esvaziamento no que é disseminado nas letras.
Com autoridade para falar, tanto pela importância que tem dentro do rap, inclusive foi escalado para representá-lo no Rock In Rio 2024, quanto por sua caminha, ele disse por videochamada os motivos de fazer essa crítica ao mercado, não aos artistas, compartilha de que forma faz suas pesquisas, criatividade, a produção do próximo álbum e como as mulheres tem feito a diferença no trap/rap nacional, trazendo outras experiências e ideias que saem da superficialidade que os homens têm repetido em suas produções.
“Os caras saturaram muito no comportamento, no jeito de fazer, nas mentiras pra caramba… já as minas, têm trazido muito a verdade delas, a subversão do jeito delas, de falar as coisas que elas falam, da forma que elas falam”, observou.” E, por exemplo, na parte delas eu já continuo achando interessante o trap, e soa novo. Elas não cantam com muita melodia, é coisa de atitude de rap, texto de rap, muito bem explicado, né? Não tem aquela parada que o cara canta meio rápido e você não entende muito o que o cara tá falando, que é o jeito que muitos dos caras cantam. Então, num resumo, eu acho que existe muita gente saturada com o que foi feito nos últimos anos no rap brasileiro, principalmente dentro do trap”.
Pegando como gancho o single “Eu Não Tenho Mais Tempo”… Rincon Sapiência não tem mais tempo pra quê?
É bem complexo, mas de forma bem direta, como a música sugere, acho que a gente vive um momento em que estamos expostos ao mesmo consumo de música, acesso às mesmas distribuidoras de música e dos mesmos lançamentos. Naturalmente, a gente acaba ficando exposto a consumir as mesmas coisas ou consumir coisas parecidas, né? Então, nessa música eu exponho a minha escolha de não participar de tudo que está sendo acontecendo, de consumir tudo, que em tese seria um padrão de consumo. Algo que poderia ser visto como normal, de consumir tais coisas, agir e fazer as coisas de tal forma, principalmente no campo da música. Esse é um tempo que eu não me disponho a ter, de falar as mesmas coisas e se comportar da mesma forma. Até porque eu me vejo num momento particular, diferente, que é a questão da idade. São as prioridades que a gente tem, sobre o que a gente quer fazer, a forma que a gente quer se cuidar. Por isso, eu não tenho mais tempo… sou eu batendo comigo mesmo, de forma pessoal, e identificando que nem tudo eu devo fazer, nem toda bola tem que ir pra dividida. Enfim, sobre tudo que tá aí, falando de rede social, falando de música, falando de alimentação, falando de entretenimento, de tempo de diversão. Entendo que nem tudo é pra mim. Você acaba escolhendo as coisas mais da hora e para outras você não tem mais tempo.
Isso vai na questão também do rap hoje se tornar uma música pasteurizada, principalmente o que está em evidência… obviamente, a gente não pode generalizar, mas quase tudo está sendo igual, não tem uma mudança de direcionamento, cada um está seguindo o que o outro está fazendo porque está dando certo. Vai nesse lance de escolher seu próprio caminho e não seguir para onde todo mundo está indo?
Sim, isso de alguma forma eu sempre fiz, de ter, de fazer a parada do meu jeito, de colocar minhas assinaturas, meus signos. Isso sempre foi algo que eu busquei fazer, mas eu reconheço que você tem que ter um certo cuidado, assim… porque todo mundo tem na mão as mesmas coisas. A gente tem as mesmas redes sociais, as mesmas distribuidoras de música que naturalmente distribuem as mesmas coisas. A gente acessa as mesmas páginas de notícias do mundo, que por sua vez vai dar destaque, vai sempre falar sobre as coisas que estão em evidência, os artistas que estão em evidência. Aí, mesmo eu sendo um cara que busco ter essa minha originalidade, esse meu estilo, fazendo uma reflexão comigo mesmo, comecei a notar que se eu não me atentasse, estaria seguindo o mesmo caminho. Então, o rap (sim) vive essa época… eu sou de um tempo, que não é um tempo muito distante, eu não sou tão mais velho como os demais, que as pessoas tinham mais personalidade, artisticamente falando. Então, você tinha o Rincon, que vinha de um bairro X da Zona Leste de São Paulo e cresceu ouvindo tais coisas, e o som dele era assim. Aí você tinha o Emicida, o Rashid, o Projota e outros contemporâneos meus que tinham suas assinaturas, seus estilos, seu jeito de colocar a voz, suas pesquisas. E hoje a gente faz música da mesma forma, com os mesmos programas, acessam os mesmos samples, têm os mesmos recursos e ninguém se preocupa mais em fazer e colocar sua assinatura. Todo mundo segue a forma que a mecânica nos dispõe, né? Usam os mesmos recursos, baixam os mesmos samples, e falam as mesmas gírias… tipo, eu sou de São Paulo, da Zona Leste, isso conta muito sobre a minha linhagem, o meu jeito de falar. Tenho linhagem de mineiro, de pessoas do interior de São Paulo, de nordestino, um pouco mais longe, né? Isso tem um jeito que eu e minha família temos de falar, de se portar e se comunicar. Mas na música todo mundo é a mesma fita, vai falar a mesma gíria, vai se comportar da mesma forma, usar as roupas tudo parecidas, fazer os instrumentais parecidos ou cantar as mesmas coisas. Isso, de fato, tem tirado o brilho desse bagulho grandioso que a gente faz.
E você foi um dos caras que trouxe, querendo ou não, uma mudança pra dentro do rap fazendo o afrobeats num período que quase ninguém dava atenção no Brasil. Mas agora, você chega com um trap. Como você consegue circular entre esses ambientes sonoros sem perder a sua originalidade?
Eu acho que a questão da composição é o que me leva muito a querer explorar outros sons. Eu já tenho essa pesquisa comigo mesmo sobre raça… aí pesquisando sobre raça, você é levado para o continente africano. Você indo para o continente africano, entende que existe uma ancestralidade muito legal, que a gente busca se conectar falando de raízes. Mas existe um continente africano contemporâneo, que nesse exato momento tem explorado coisas. Então nessa pesquisa contemporânea, eu cheguei até os afrobeats e passei a colocar os elementos dele na minha música. Mas, mesmo assim, continuo sendo rapper. E se você pesquisar muito de afrobeats, os cantores, na sua maioria, cantam melodicamente. Eu tenho essa pesquisa, mas trago pro rap, pro jeito rap de cantar. Nessa mistura toda eu fiz “Ponta de Lança”, “A Coisa Tá Preta”, “Afro-Rap” e boa parte do meu trabalho, né? O trap, na verdade, se popularizou por ser a forma mais moderna do rap, vamos dizer assim, e o brasileiro é muito musical, muito melódico. Então no Brasil se criou também esse jeito melódico, de se fazer trap, mas o trap também é uma música onde os rimadores participam. Em um dado momento, fazendo uma análise, eu falei assim: pô, o trap também é um som a ser explorado por mim. Essa estética do trap tem tudo a ver com o flow que eu faço e com o meu jeito de compor também.
Você acha que existem períodos e períodos em que um estilo começa a bombar, fica mais em alta, todo mundo segue, depois vem outro e toma o lugar… ou vai da pesquisa de cada um? Pergunto porque o trap estourou, aí veio uma galera fazendo drill, depois veio o afrobeats e agora estão falando do retorno do boom bap (algo que sempre esteve por aqui). Tem observado essas movimentações?
De fato as coisas são cíclicas. Eu vejo isso dessa forma porque se a gente for pensar nas coisas mais clássicas que consumimos no Brasil, muito desse rap dos anos 90, era baseado no Gangsta Rap. E se você reparar, não existia só o Gangsta Rap, mas foi um estilo que pegou muito e que chegou muito forte e combinou também com a nossa forma de fazer rap, com a realidade das periferias daqui também. Então, na verdade, eu tenho visto de forma positiva… tem algumas pessoas preocupadas em explorar outros sons e fazer outros sons e consumir outros sons dentro do recorte do rap. Acho que o grande detalhe do trap, especificamente, é porque eu ouvi essa saturação que tem a ver com o que eu falo na música também… todo mundo passou a mentir as mesma coisas, a fazer da mesma forma, se comportar da mesma forma, usar as roupas da mesma forma, falar as coisas tudo muito parecidas. Principalmente os caras, né? Porque, por exemplo… a safra das minas que estão em evidência agora, que é trap também, para mim é muito mais interessante o que elas fazem. A forma que elas estão fazendo não foi saturada como a forma que os caras estão fazendo, certo? Os caras saturaram muito no comportamento, no jeito de fazer, nas mentiras pra caramba… já as minas, têm trazido muito a verdade delas, a subversão do jeito delas, de falar as coisas que elas falam, da forma que elas falam. E, por exemplo, na parte delas eu já continuo achando interessante o trap, e soa novo. Elas não cantam com muita melodia, é coisa de atitude de rap, texto de rap muito bem explicado, né? Não tem aquela parada que o cara canta meio rápido e você não entende muito o que ele tá falando, que é o jeito que muitos dos caras cantam. Então, num resumo, eu acho que existe muita gente saturada com o que foi feito nos últimos anos no rap brasileiro, principalmente dentro do trap.
“SE EU ME DISPOR, COM QUASE 40 ANOS, A QUERER ME PARECER UM MOLEQUE FALANDO QUE EU TÔ FUMANDO PRA CARALHO, BEBENDO PRA CARALHO E TRANSANDO PRA CARALHO, FAZENDO UM MONTE DE COISA QUE JÁ NEM CABE NA MINHA REALIDADE, EU VOU PERDER TOTALMENTE AS CHANCES DE FAZER UM BAGULHO GENUÍNO, COM PROPRIEDADE, PORQUE EU NÃO SOU ESSE CARA E NÃO TEM COMO EU SER ESSE CARA”.
Está faltando criatividade, pesquisa, referências para a galera atualmente, mesmo com todo o acesso à informação?
Eu acho que falta, justamente porque a gente tem acesso à informação na mão, com rapidez, e muito recurso. Eu falo porque eu sou produtor musical também. Então, dá para fazer muitos tipos de som, dá para explorar muita coisa, você pode baixar os samples e hoje é mais fácil você produzir coisas. Existem bancos gratuitos que você pode baixar para produzir e alguns que você pode assinar também. Mesmo existindo esses recursos, as pessoas fazem da mesma forma, buscam pela mesma pesquisa e o mesmo resultado na sua maioria, e tem várias outras coisas que dá para explorar. Eu acho sim que falta essa ambição, porque o artista precisa querer também fazer diferente. Muitas vezes, o artista quer o mesmo resultado. Ele viu alguém que fez sucesso falando tal coisa, se comportando de tal forma, aí ele fala: eu quero essa fatia também. Ele corre atrás disso, pega as roupas igual, as batidas igual, o texto igual e vai para cima querendo esse mesmo sucesso. E, da minha parte, eu penso muito em legado, como que os artistas que eu admiro deixaram o legado, e estão construindo coisas, fizeram coisas novas… o tempo vai passando, e se ficar correndo atrás da tendência, você não estará escrevendo seu nome na pedra. E esse não é um lugar que eu particularmente pretendo estar. Eu quero escrever meu nome na pedra, já estou escrevendo de alguma forma. Para que eu faça diferente, eu preciso olhar para mim mesmo, enxergar o que está acontecendo ao redor e falar assim: eu consigo trazer o meu melhor fazendo essas coisas, falando dessas coisas porque eu tenho propriedade. Agora eu me dispor, com quase 40 anos, a querer me parecer um moleque falando que eu tô fumando maconha pra caralho, bebendo pra caralho e transando pra caralho, fazendo um monte de coisa que já nem cabe a minha realidade, eu vou perder totalmente as chances de fazer um bagulho genuíno, com propriedade, porque eu não sou esse cara e não tem como eu ser esse cara. De fato existe uma falta de interesse de muitos, de pesquisar e de saber onde está pisando mesmo.
Você é um artista de poucos singles. Solta apenas de tempos em tempos. Tem preferência em fazer álbuns?
Eu gosto muito de fazer disco, né? Gosto muito de fazer disco, de ouvir disco. Mas a gente tem que entender também que na era digital tudo é mais rápido. Até porque eu não consigo fazer
discos com tanta rapidez, porque tem aquele disco que você monta uma história, um projeto linkado com o título do álbum e com as coisas que você tá falando no álbum. E tem discos que, com todo o respeito, assim, tem artista que junta 20 músicas, 17 músicas que ele fez, põe o nome e lança, mas não tem uma concepção, uma narrativa, muitas das vezes. Eu gosto de fazer um disco conciso, isso exige tempo de fazer. E aí se você quiser trabalhar dessa forma, você acaba ficando muito ausente, né. Tipo, só lançar quando tiver um puta disco pronto. Então eu tenho entendido que posso ser esse cara que lança mais singles também. Como eu tenho bastante música, bastante repertório, estou fazendo um disco novo, mas música não tem sido um problema, porque tenho conseguido fazer bastante coisa. Eu estou bastante disposto a fazer mais lançamentos de single.
De que forma (ou formas) funciona o seu processo de composição e produção?
Tem acontecido de várias formas, e são várias etapas, né? Falando do que eu tenho feito ultimamente, tem aquele período que eu estava muito mergulhado em afrobeats, que tem sido o meu carro-chefe há alguns anos, e nesse período eu fazia músicas com um certo tipo de composição. Mas ultimamente eu tenho me interessado a escutar rap, rap mesmo, logo eu passei a ficar mais interessado em fazer rap também, não que as coisas de afrobeats não eram rap, mas eu passei a escutar mais rap e nesse período eu acabo tendo um outro tipo de composição, de fazer mais barras, rimas mais técnicas, tipo punchline… essas paradas todas que é muito do universo do hip hop, do rap. Então, pra cada momento que eu tô escutando alguma coisa ou pesquisando sobre algo, eu tenho um processo criativo. O de agora tem sido esse lance bem de rapper mesmo, assim, de fazer bastante barras e de pouca melodia e muito texto de locução, coisa falada e versada. Tudo tem sido feito no mesmo estúdio que eu faço há um tempo já, que é aqui onde eu moro, e tenho tido uma boa relação com outros beatmakers também, com outros produtores. Isso tem ajudado no meu processo criativo, já que não é sempre que eu tô conseguindo fazer produções que me apetecem.
Qual foi o direcionamento para criar “Eu Não Tenho Mais Tempo”?
Essa música tem uma experiência pessoal muito forte. Essa reflexão de falar que não tenho mais tempo, de priorizar o meu tempo para coisas que vão me render, que vão me render saúde, vão me render paz de espírito, satisfação, tudo isso. A vida do artista é assim, a gente vai vivendo experiências e transforma tudo em música, seja uma experiência afetiva, algum desacerto, algum acerto, tudo a gente faz virar música, então essa minha experiência pessoal de priorizar meu tempo, de reconhecer que eu preciso cuidar mais de mim, cuidar mais da espiritualidade, dessas coisas todas, me levou a compor. Eu também tento evitar de fazer disso um carro-chefe porque quando a gente fala de outros rappers, de outras coisas do cenário do rap, a gente tá falando dos nossos companheiros de trabalho também, de gente que vem do mesmo lugar que eu venho, de gente preta, muitas vezes… eu não tenho castelo nenhum em atacar pessoas e descredibilizar outras pessoas, outros artistas. Mas sim, me vejo como um cara que tem uma autoridade pelo tempo que faço música, pelos processos que eu passei também, pelas fases dentro do rap, da cultura e tudo mais. Me vejo como um cara com propriedade pra falar de tais coisas e sim eu tenho meu lado crítico também. Falei certas coisas do cenário, mas a música não é sobretudo voltada a atacar e questionar o cenário atual e outros rappers, é principalmente sobre o meu autocuidado e o meu momento de priorizar as coisas certas.
É mais sobre o mercado do que dos próprios artistas.
O mercado, o mecanismo, os algoritmos… tudo funciona dessa forma que é o futuro, a tecnologia, da hora legal é assim que é, mas para fazer, para alienar a criatividade dos artistas, para alienar a experiência do ouvinte, para alienar a cultura, é rapidinho se a gente não tomar alguns cuidados.
Você falou que está trabalhando no seu próximo disco. Pretende lançar ainda esse ano ou mais para frente?
Pelo andar das coisas tem grandes chances de sair no ano que vem. Mas a contação da história dele já está se desenhando para já começar a acontecer. Tipo, os lançamentos, a estética do que eu estou trazendo, muito em breve vai começar a aparecer nos meus lançamentos. O que eu falo no disco, vai começar a aparecer também nos lançamentos… quando você fala o ano que vem parece que ficou longe pra caralho, mas na verdade tá logo ali. E a ideia é a gente já iniciar os trabalhos sobre esse disco agora, nesse segundo semestre. Eu já estou no espírito do disco, por mais que o lançamento dele, muito provavelmente, seja só em 2025, a comunicação está mais próxima do que nunca para começar a acontecer.
Queria saber dessa experiência de representar o rap no Rock in Rio…
Eu particularmente gosto muito de experiências que a gente divide com outras pessoas, com outros artistas. E são artistas de várias gerações, de diferentes lugares do Brasil. Eu acho que é um momento importante também pelos 50 anos do hip-hop, pela valorização e a relevância do rap também, que acho que é inquestionável. Nem tudo são números, mas os números também são uma base pra gente entender. Eu ainda tenho quente na minha cabeça o período que o rap era visto como um subgênero dentro da música brasileira. Não existia tanto crédito o que a gente fazia. E aí o mundo deu voltas. É lógico que eu não vejo ainda o rap tão democrático como poderia, mas tem muita gente fazendo trabalhos incríveis, interessantes e falando coisas interessantes, e com brilho, com arte que ainda não são reconhecidas. Mas, sim, o rap alcançou muita coisa, e eu vejo ele tão forte quanto os outros gêneros musicais que a gente já conhece aqui na música brasileira. Ele não tem a longevidade de outros gêneros musicais, como o sertanejo, o samba, mas é tão forte quanto. Por isso, essa força precisa ser representada nos grandes festivais também. O rap merece estar ocupando os lugares que tem ocupado e alcançando os números que tem alcançado porque de fato está conseguindo cativar os ouvintes, as pessoas e ser referência dentro da música brasileira.
Muito se fala de que o rap perdeu relevância nas periferias, e que o funk está tomando esse lugar que era do rap. Você acredita que existe essa substituição ou os dois gêneros se complementam?
Eu vejo os dois gêneros presentes, né? Eu vejo também uma mudança de perfil, porque como a gente media isso antes. Era, entre aspas, a tribo. A gente entendia que a tribo, que o pessoal do hip hop, do rap, era o povo da periferia, e a gente falava isso nas músicas (sobre a periferia), aquela coisa toda, de periferia pra periferia. Mas eu acho que a internet, a globalização das coisas, tirou essa ideia da tribo, de segmentar. Então, se você pegar o telefone de muita gente da quebrada, a playlist das pessoas, você vai ter o Exaltasamba, o sertanejo, o piseiro e o rap também. Só não tem aquele espírito do cara da quebrada falar: eu sou o mano do rap, por exemplo. Tinha muito disso na escola, o cara que ouvia rap era chamado de o do rap: e aí do rap…
… até nas roupas, na forma de se vestir, no boné….
Exato, tinha o código das roupas, da pessoa ser a pessoa do rap. Hoje em dia esse perfil não tem mais. Mas o que eu diria sobre o funk é que ele é muito mais direto sobre a quebrada. O rap tem um pouco desses trejeitos estadunidenses de trazer comportamentos de lá, estilo da roupa, o que tá falando da música, desde termos tipo a bitch, o plug… “vou ligar pro meu plug”, “vou falar com minha bitch”… coisas que se você não ouvir rap e não está acompanhando o que os gringos fazem, você nem sabe o que a pessoa tá falando. Agora, já o funk tem um texto muito mais direto, tipo: “eu andava de bike, agora eu tô de carro”. Então, eu vejo o funk um pouco mais acolhedor e parceiro da periferia do que o rap, assim, de forma direta, né?
Vai naquele sentido do rap ser mais duro e o funk partir para o entretenimento, fazer a galera dançar e, independente do que se fala na letra, o som também cativa.
Tem esse lado também. Mas eu vejo que o funk é um gênero amplo. Tem muito funk que acaba sendo um ombro amigo pro cara da quebrada, porque está falando aquela história de luta, de superação… Aí você vai olhar pra lata (a cara) do mano, é igualzinho o mano que está ali na feira, o jeito que ele se veste, que ele se comporta, os kits que ele tá vestindo, sabe? Então o rap é um pouco mais lúdico… por mais que pode ser uma bijuteria ou não, mas quando você tá com aquelas correntes, o jeito de andar, você tá num estilão mais gringo, aquela coisa toda. E os códigos do funk falam muito mais direto com o moleque de quebrada. O artista de funk parece muito mais com um cara que você vê saindo na rua aqui de casa e dando um pião. Por isso, eu vejo o funk um pouco mais parceiro porque a música tem essa função também de ser entretenimento, de fazer dançar, de conscientizar de tudo, mas tem um lado da música que eu gosto muito e que eu sinto falta no geral, que é a música ser o ombro amigo, tá ligado? Você escutar a música do parceiro, do artista, tá falando um bagulho que você tá vivendo algo parecido ou viveu. E eu acho que esse caráter tá muito em falta porque tá sempre no campo da fantasia, do tenho muita coisa… que é da hora também, né? Que muitos ouvintes buscam anestesia também quando estão ouvindo música. Não quer também saber da realidade, ouvir mais um pouco de dor do que ele está vivendo. Às vezes o ouvinte gosta dessa anestesia, mas eu acho legal também quando tem esse ombro amigo por parte da música. Eu vejo o funk um pouquinho mais parceiro da quebrada nesse sentido.