Cheguei quase correndo para não atrasar. Do lado de fora da Escola Estadual Professor José Vilagelin Neto, no bairro Proença, em Campinas, no interior de São Paulo, já era possível ouvir a seleção do Dj Dumbo, que era acompanhado pela percussão do legendário Ding Dong. Ao entrar pelos portões bateu uma nostalgia dos longínquos tempos de escola. Porém, na época dos ensinos fundamental e médio, o rap e o hip hop não tinham espaço dentro do ambiente escolar. O único elemento que conseguiu quebrar as barreiras foi o graffiti, a arte que dava cor para as paredes cinzentas dos muros do colégio.
Felizmente, essa barreira – ainda resistente – tem sido quebrada aos poucos, e minha visita ao Vila foi para acompanhar a primeira batalha de rimas feita pelos alunos.
A ideia de organizar a Batalha do Vila partiu da professora de artes Ana Sthel. “Eu já tinha feito uma pequena em outra escola e os alunos piraram”, diz. “E no Vila, eu vi que tinha alguns que gostavam de rimar. Aí, toda sexta-feira, na hora do intervalo, eles batalhavam entre si. Mas eu percebi que não tinham muita noção de como era”. Por esse motivo, ao invés de levá-los para uma das várias batalhas que acontecem na cidade, ela decidiu levar a modalidade para dentro da escola. “Na verdade, eu não tinha muita expectativa de que todos iriam abraçar a ideia, mas falei: vou fazer e com certeza alguém vai se interessar. A sementinha vai ser plantada”.
Envolvida com a cultura hip hop há um bom tempo, Ana é graduada em música pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), Santa Catarina, com bolsa do Prouni, foi uma das roteiristas e produtora executiva do mini-doc “O Deejay no Movimento Hip Hop: o toca-discos como instrumento musical” e é filha do percussionista Vinicius Geribello, o Ding Dong. A convite dela fui ver as batalhas de improviso das turmas da manhã, ensino médio, e da tarde, ensino fundamental, e ainda tive a oportunidade de falar sobre as possibilidades que o rap, graffiti, DJ, break e o conhecimento podem proporcionar no futuro, seja dentro ou fora do HH, usando como exemplo a minha própria trajetória no jornalismo musical.
Foi interessante observar que mesmo sendo de periferia (onde a maioria dos estudantes moram), ter chegado ao mainstream, tocando no rádio e em programas de TV, e se tornado trend nos aplicativos mais usados pela geração Z, o rap e seus sub-gêneros, e principalmente o hip hop não é tão consumido pelos adolescentes. Quando perguntei se alguém sabia o que era e quais elementos formam o hip hop, poucos levantaram as mãos.
Isso não quer dizer que nunca tiveram contato, porque conheciam Emicida, Orochi e Xamã, usados como exemplos de MC’s que construíram uma carreira a partir das batalhas, e na própria escola tinham graffitis. Ao mesmo tempo que ovacionavam assim que os instrumentais de qualquer música dos Racionais começava a tocar.
“Eu não acompanho, só rimo mesmo”, disse Victor Gabriel, o Vic, de 11 anos, um dos 5 alunos do Vilagelin que aceitou o desafio de batalhar com MC’s experientes na frente de todos os colegas. “Foi uma coisa legal, porque achei que ia batalhar com alguém da minha idade, mas batalhei com adultos, fiquei meio nervoso”.
Ao responder, Vic me pergunta se deixou transparecer seu nervosismo. Digo que não, porque todos observaram que ele estava focado naquilo que se propôs fazer, mesmo sem ter base ou referência, e conseguiu chegar às semifinais.
Único participante da sua turma (no período da tarde), o adolescente impressionou a todos já na primeira vez que pegou o microfone na mão para improvisar. “Foi muito da hora, porque essa é a oportunidade da pessoa que tem talento mostrar pra todo mundo”, ressalta. “Não sei se vou continuar rimando, mas se esse for meu futuro, eu vou”.
A BATALHA
Antes das disputas se iniciarem, às 10h20 da manhã, DJ Dumbo e Ding Dong fizeram o abre alas com clássicos do rap. Essa introdução serviu para mostrar um pouco do ofício do DJ e que as pick ups funcionam como instrumentos. A conexão entre percussão orgânica e beats não só funcionou como chamou a atenção. Tanto é que uma aluna pediu para tocar as congas. Ding deu oportunidade e os dois fizeram uma batucada.
Para comandar a competição foram convidados os MC’s Ikki, apresentador e um dos criadores da Batalha do Cálice, Duzza e Miguel Passará, cantor, produtor, slammer, b-boy e linha de frente do Slam Voz e Arte Batalha, e o DJ Christopher Palim, que ficou responsável por soltar os beats. Assim como acontece nas ruas, o público – ainda acanhado – foi chamado para perto do palco. Depois das apresentações, as regras foram dadas: “não pode palavrão, homofobia, transfobia, racismo e machismo”, afirmou Ikki, ressaltando que alguns jargões usados (“mata ele”, quero ver sangue) ao longo da batalha eram apenas figurativos.
Como a quantidade de participantes não era tão grande, e para exemplificar a forma que a competição acontece, Ikki, Duzza e Passará batalharam contra os alunos.
Por nunca terem rimado numa batalha, Vinícius Azevedo, Robert William (Robim), Dan, Bruno Mileris e Vic estavam nervosos. Porém, isso não os impediu de bater de frente com pessoas que já tinham um tempo de caminhada. No primeiro turno da batalha, Robim, de 16 anos, conseguiu chegar até à semifinal. “Deu uma ansiedade, mas foi muito emocionante”, afirmou ele. “Pretendo continuar rimando junto com meus amigos, e agora com a caixinha de som que eu ganhei vai dar para treinar mais”.
Premiados por chegarem mais longe, Vic e Robim se tornaram herois de suas turmas, assim como todos os participantes – ponto evidencia em todos os momentos pelo apresentador. Nos dois turnos, Duzza foi a campeã. Por ser a única mulher rimando, suas vitórias também serviram de incentivo para que as alunas se envolvam na cultura. Toda vez que disputava, os olhos das meninas se voltavam para ela. Com atenção, observavam cada métrica, e quando ela “matava” o adversário, todas iam junto com gritos e aplausos.
Recém-chegada às batalhas, a MC tem grande potencial de ascender artisticamente. Estar ali, mostrou para aquelas meninas que elas podem fazer e estar onde quiserem. Também serviu de estímulo para que Duzza continue rimando.
Ao final, vários estudantes rodearam o DJ para ver como se manejava uma pick up. Ele prontamente atendeu ao pedido de alguns para soltar o beat, inclusive ensinando como fazer um scratch. Às 15h20 as atividades foram encerradas com todos felizes pelo resultado. O apoio da diretora Silvana Heinrich e do vice-diretor Rodrigo Batista, das coordenadoras pedagógicas Viviane Baron Jacinto e Janice Orlandi de Oliveira, e dos/as professores/as envolvidos foi extremamente importante para que a fagulha se acendesse.
Essa experiência mostrou que o hip hop continua sendo essencial para a educação. Ressaltei esse ponto na minha rápida fala, dizendo que para se ter um vocabulário e raciocínio rápido é necessário ler. Quem não o faz é necessário fazer, porque é um exercício. Mas não só isso, filmes, artes, cultura no geral e vivências servem de aprendizado. A escola tem papel na formação, mas existem outras matérias que só se aprende vivendo. Para muitos, o hip hop foi uma escola, já outros ainda estão o conhecendo. Levá-lo para o ambiente de ensino é urgente, primordial e necessário.