O Brasil tem grandes beatmakers. Mas a maioria deles estão bem longe dos holofotes. Apenas alguns estão no hype e, consequentemente, ganhando dinheiro. Um dos motivos dessa falta de reconhecimento é a desvalorização do trabalho criativo do profissional. Na maioria da vezes, eles nem recebem os créditos de autor da obra, quando produzem para os MC’s rimarem. É por essas e outras que Allb e seu time decidiram fazer uma chamada na intenção de captar beats autorais de produtores dos quatro cantos do país para criar a primeira coletânea do selo curitibano Endorphins Lab.
“Adoramos a música instrumental, temos paixão pelo hip- hop, pai da matéria em misturar, subverter, repaginar, samplear e lembrar do esquecido. Buscamos as mais diferentes influências, sem colonização cultural ou imposição de modismos”, diz ele. Temos no beatmaker a nossa figura central. Podem chama-lo também de DJ, produtor, curador, o que importa para nós é fazer Marcos Valle funcionar com Skull Snaps, porque é assim que se faz. Brasil é desafio? Pode até ser, mas não com um toca- discos, vinis e uma MPC”.
No chamamento para compor a Headnod Mixtape (headnod é o balannço de pescoço, quando a batida é boa), a Endorphins recebeu mais de 70 produções, dos mais variados estilos. A temática foi a música brasileira. E o objetivo era selecionar 20 músicas, mas na seleção final entraram 36. Na lista estão alguns nomes conhecidos como Dr. Drumah, SonoTWS, Dario Beats, Dj Will, Cabes, Yoka, e vários outros que também estão no corre. A versão digital do projeto chegou acompanhada de uma fita cassete, com tiragem de 50 unidades numeradas. Os detalhes são contados pelo Allb nesta conversa.
Por que vocês decidiram reunir diferentes beatmakers para fazer uma mixtape?
O termo mixtape foi por muito tempo, nos anos 80 e 90, um sinônimo de coletânea. Era muito comum gravar em fitas, músicas das rádios, vinil ou de outras fitas, pra se formar uma coletânea temática. Por exemplo, mixtape de rock nacional, punk rock, hip-hop, love songs, samba, The Best of Tribe Called Quest, etc. Ou seja, as mixtapes são na realidade, coletâneas em fitas. Com o objetivo de manter essa tradição, resolvemos fazer uma chamada aberta a todos os beatmakers do Brasil e do mundo, para nos enviar seus beats para seleção do material que seria utilizado em nossa coletânea, dentro de um tema específico, que foi o uso de samples de música brasileira. Se prestarmos bem a atenção, as mixtapes também são parentes mais velhos das playlists dos serviços de streaming de hoje. Os usuários das plataformas digitais, utilizam essa funcionalidade para juntar várias músicas de diferentes artistas em um lugar só. As mixtapes tinham esse mesmo propósito, porque pra você escutar no carro ou no boombox, não dava pra carregar a coleção inteira de fitas. Você tinha que preparar as coletâneas e levar só as melhores contigo. Nossa intenção também foi resgatar a origem disso. Hoje parece extremamente fácil fazer uma playlist, tendo milhões de músicas a sua disposição de um jeito muito prático. Antes era feito com muita pesquisa.
Teve algum tipo de concurso para a seleção do beats ou vocês convidaram beatmakers que já eram parceiros?
Nós tínhamos apenas 2 regras para participar: uso de samples de música brasileira e ser um beat tipo headnod (head nodding = movimento do pescoço quando o groove é bom). Não teve nenhum convite direto, o que fizemos foi uma divulgação ao longo de 3 meses, em nossos canais, aberta a todos os beatmakers. Não privilegiamos nenhum parceiro ou artista já conhecido por nós, para que a seleção fosse justa e concentrada apenas nos aspectos criativos e artísticos. Na realidade até a coletânea sair não tínhamos nenhum contato direto com a maior parte dos beatmakers. O que nós queríamos era diversidade de estilo e de pessoas e felizmente conseguimos reunir isso, tendo beatmakers experientes, junto com outros que acabaram de iniciar essa jornada.
Como foi a seleção dos sons?
Nós recebemos mais de 70 beats, que, para um selo independente com um pouco mais de 1 ano de vida, nos surpreendeu e nos deixou muito feliz. 70 artistas que se devotaram a investir suor e tempo para produzir algo para nossa coletânea. Somos muito agradecidos a todos, independentemente se constam na coletânea ou não. A seleção foi um processo difícil, porque o nível das faixas recebidas foi extremamente alto. A primeira triagem foi para selecionar os beats que cumpriam as 2 regras da coletânea. O grau de assertividade foi grande e desconsideramos apenas 5 faixas nessa primeira triagem. Depois olhamos para o grau da qualidade musical, qualidade da mixagem e da produção. Esse critério tem relação com uma das bandeiras do selo que é ajudar a profissionalizar a cultura dos beatmakers. Aqui deixamos pra trás mais uns 5 beats, o que mostra que a galera tem se atentado pra isso também. Aí começamos com a seleção mais artística mesmo. A ideia era selecionar 20 beats ou 1h de música, mas o nível estava muito alto e tivemos que mudar essa regra, aumentando de 20 para 36 beats, praticamente a metade do total que nos enviaram. Então, convidamos várias pessoas para escolher seus 36 beats favoritos dos 60 que restaram. Algumas pessoas com mais vivência no hip-hop e na cultura dos beatmakers, outros sem vivência alguma, para trazer vários pontos de vista para escolha. Ai esses beats foram agrupados e eu, como produtor executivo do selo, fiz a seleção final de acordo com os critérios da coletânea. A seleção final na realidade tinha 38 beats. Dois deles ficaram de fora por questões de encaixe na minutagem da fita. Mídia física tem essas limitações infelizmente.
O Brasil tem muitos beatmakers bons. Por outro lado não há uma valorização dos profissionais. Como vocês enxergam esse cenário de música instrumental no Brasil? O consumo aqui é grande ou os brasileiros são mais apreciados lá fora?
No aspecto valorização, a Endorphins Lab é bem resolvida quanto a isso, porque entendemos que faz parte da nossa responsabilidade e também é um dos nossos objetivos, apresentar isso aos ouvintes e promover a cultura do beatmaker e da música instrumental, como se fosse um processo de educação musical. Nossa visão é que o brasileiro ainda é pouco educado do ponto de vista escolar e de consciência crítica de uma forma geral. Isso nunca foi uma pauta pública séria. Todos os governos falharam e continuam falhando no que diz respeito a investimento na educação. Obviamente, isso se reflete na música, não só no hip-hop e nos beats, mas em todo o mercado musical. Então temos que ser resilientes para ensinar e apresentar isso ao público, abrindo esse universo as mais ouvintes.
Essa apreciação é mais comum fora do Brasil, em locais como Inglaterra, Holanda, Alemanha, Japão e EUA. Temos ouvido muitas coisas sendo criadas na Rússia também, porque o mercado de vinis lá é bem diferente, pois vários lançamentos do período da Guerra Fria, ficaram escondidos e os beatmakers e DJs estão apresentando isso ao público agora. Como pode ver, esse processo de educação é geral.
Quando isso isso consolidar, as pessoas entenderão que ser beatmaker, é ser um artista, um profissional, que deve ser respeitado como qualquer outro. Isso requer paciência dos envolvidos com a cultura em educar e do público em estar aberto a receber novas informações, evoluir e ajudar a quebrar esse paradigma da indústria da música, pois na arte não existe competição. Você pode acordar escutando música clássica e terminar o mesmo dia ouvindo música eletrônica. Tem espaço para todos.
Esse projeto vocês vieram com a proposta de samples de música brasileira. Sei que ainda é cedo, mas você já têm ideia dos temas para os próximos volumes?
A ideia da coletânea é ser anual, com o lançamento sempre perto do meio do ano. Então ainda não definimos o tema do próximo volume. Nosso planejamento prevê iniciarmos os trabalhos para o volume 2 já no final desse ano, então logo logo teremos novidades.