A movimentação em frente à Audio ainda é pequena. É terça-feira, 19, véspera do “feriado” da Consciência Negra. Às 21hs algumas pessoas aguardam a abertura da casa para curtir pela primeira vez no Brasil uma festa assinada pelo AFROPUNK. A expectativa é grande, pois a “Black To The Future” pode ser o termômetro de como será a estreia do festival em Salvador, na Bahia, nos dias 28 e 29 de novembro de 2020.
Às 22hs, a entrada é liberada. O fluxo caminha em lentidão, mas aumenta conforme a madrugada vai entrando. Linn da Quebrada abre os trabalhos lendo o manifesto da AFROPUNK, que diz sim para: o amor, ao preto, às mulheres, ao queer, à fluidez, aos imigrantes, à liberdade. E diz não ao sexismo, racismo, capacitismo, etarismo, homofobia, gordofobia, transfobia, ódio. Já na sequência, ela chama ao palco a Black Pantera, banda de hardcore de Uberaba, Minas Gerais, que já participou de 3 edições do evento.
A presença do público ainda é fraca. Mas Charles Gama, Chaene da Gama e Rodrigo Augusto “Pancho” iniciam com toda a energia imaginável. No meio da performance Charles, o guitarrista, vai para a pista fazer seu solo no centro da roda. Uma imagem do presidente vomitando esgoto surge na tela. Gritos de resistência. Para complementar o protesto e reafirmar que vidas negras importam, a Black Pantera faz uma versão bem pesada de “A Carne” da Elza Soares. Agradecem o protagonismo dela na luta da comunidade afro-brasileira. Mostram que o rock também é música preta. Com o “coquetel molotov” que eles lançaram, a chama foi acesa.
A casa se encheu. Pretos e pretas, dessa vez, são a maioria. Os estilos bem variados, das roupas aos cabelos. Black power’s podem ser observados de todos os cantos, mas não só eles. Há uma bela mescla de cortes e tranças. A atmosfera é boa. Todos vieram para celebrar e, ao mesmo tempo, resistir.
Enquanto o palco é montado, a DJ Aisha Mbikila faz geral dançar com uma fusão de rap, trap, funk e samba. Linn da Quebrada recebe a companhia de Magá Moura para apresentar as demais atrações do line. Da Bahia, as Aya Bass vêm todas cheias de ginga para esquentarem ainda mais o ambiente. Elas são Luedji Luna, Xênia França e Larissa Luz. De branco, as três são acompanhadas pelo DJ e uma banda formada apenas por mulheres. É tudo muito intenso. As batidas eletrônicas se unem perfeitamente a batucada das percussões, que são tocadas com destreza e muita potência. Incrível. O termômetro permanece em alta a todo o momento. No repertório há canções feitas para interpretações do trio e das próprias cantoras que se alteram na linha de frente. Não existe a possibilidade de se decepcionar. Todos cantam, fazem rodas, sorriam. As meninas se divertem.
Das baianas, a bola é passada para os baianos do Baiana System. Como sempre, Russo Passapusso não para [nem decepciona]. Quem está na pista também não. Cada som pode ser considerado uma granada que ao tocar o chão explode e tira todos do chão. Por diversos momentos, as rodas se formam em vários pontos do salão. O clímax acontece quando soam os acordes de “Sulamericano”, “Saci”, “Playsom” e uma prévia de “Lucro”. Geral vai junto, como uma onda. A alegria estampa rostos. O suor escorre.
O festejo dá uma pausa. O “protesto” começa. A luta de Preta Ferreira é enaltecida. Ela deveria estar presente. Mas foi impedida. Mesmo assim, sua persona está representada por outra mulher negra que fala da importância da luta contra o sistema. Momento necessário. Na volta, o Baiana convida Vandal para colocar mais fogo no parquinho com “Certo pelo Certo”.
Já se passa das 2 da manhã. O DJ Mike Q comanda as pick-ups. Rincon Sapiência, mais conhecido como Manicongo, sobe ao tablado. Todo esportivo, ele convoca todos para meter dança. A microfonia tira sua atenção. O retorno no fone de ouvido parece não funcionar. Ele toca o baile. Mas parece irritado. O frenesi acontece em “Ponta de Lança”. A percussionista está concentrada. Toca com potência, principalmente na recém-lançada “Meu Ritmo”. Aliás, todas as performances, exceto do Baiana System, tiveram a presença de percussionistas mulheres. E elas elevaram o nível, complementando com maestria as batidas eletrônicas dos DJs.
Pelo compromisso com a inclusão e igualdade, o Black To The Future teve um espaço dedicado para apresentações dos coletivos Batekoo e House Of Black Velvet. O primeiro tempo foi antes de Karol Conka chegar como toda sua pompa, tipo uma deusa. O show dela não tem intervalos. Mas é bem rápido. Novamente, a percussão chama a atenção. Dá o direcionamento. Tem sensualidade. E potência.
Às 3h30 decido ir. Não vi por completo o Batekoo. A área externa está abarrotada. O cheiro dos cigarros se une ao perfume da maconha. Saio já com a expectativa do festival AFROPUNK na Bahia. O esquenta foi bom, mas poderia ter sido melhor – principalmente no tempo dos shows. No entanto, é querer demais. Era apenas um pocket do que está por vir. O mais importante foi a presença de um público que raramente está em maior número. Deu uma pequena visão do que podemos esperar. Agora, é aguardar.
Fotos: Patricia Devoraes/Agenciabrazilnews
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