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As semelhanças entre o filme “Um limite entre nós” e o clipe “ELEMENT.” do Kendrick Lamar

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  por Sidélia Silva

Há tempos quero escrever sobre o desconcertante clipe do Lamar  para a música “ELEMENT.”, mas não tenho encontrado meios, a violência explicita e gratuita desse clipe me chocaram. Mas… hoje assisti “Fences” – “Um limite entre nós” na versão brasileira – e quis escrever minhas reflexões.

Minha cabeça fez mais ligações entre essas duas obras visuais, do que a central da NET oferecendo produto. Vamos lá:

O que liga essas duas obras? Na minha concepção, a construção da masculinidade nas intempéries do racismo!

No quintal da casa de Troy (personagem de Denzel Washington) e nas ruas de Kendrick Lamar em ELEMENT., vemos homens negros em colapso com as suas percepções de masculinidade no meio do olho do furacão do racismo.

No videoclipe, Kendrick deixa o recado “I’am make it look sexy (eu vou fazer com que pareça sexy)” para as câmeras, para as pessoas, para o showbusiness. Ele vai ser o homem negro estereotipado: violento, sexy (pau grande) ou apanhando!

É como se Kendrick dissesse: “é isso que vcs querem ver em um homem negro não é?! Então toma!”. Da tela se faz, banho de sangue, surra e soco!

A releitura das cenas do clipe tem inspiração nas obras “Segregation Story” (1956) e “A Harlem Family” (1967) [dá um google que nesses livros de fotografias bem massa, em muitas produções estão usando essas referências] de Gordon Parks, fotojornalista e ativista pela cena audiovisual de blaxplotaition [movimento do cinema com diretores negros e filmes protagonizados bem como com direcionamento ao público negro, anterior a esse movimento havia os racefilms].

Em “Fences”, Troy não supera o trauma do pai e é como se passasse de pai para filho aquele cotidiano sutilmente agressivo. É como se fosse de geração em geração, um aprendendo e reproduzindo as suas defesas e o que conhece sobre como educar. Dentro de todas as frustrações do dia, dentro de todas as dificuldades do fim do mês, dentro de todas as desilusões da vida, gritando, mergulhado no silêncio. Em ELEMENT. os homens negros são preparados para o embate o tempo todo.

As violências cotidianas, as agressividades sutis, as defesas instantâneas que se perpetuam em uma vivência violenta, desde sempre, antes, esses corpos, submetidos à escravidão, hoje ao racismo. Tudo tão cotidiano que se torna comum. E duas obras visuais que seria comum, se não fosse, a violência, considerada comum, explicita.

No filme é possível ver como as gerações vão lidando com a violência que seus corpos são submetidos e a violência que muitas vezes reproduzem. E como essa violência regride e esse espaço é preenchido com outros sentimentos, cito em “Fences”, a parte em que Cory (Jovan Adepo), o filho de Troy, já fardado e adulto canta uma música que o pai cantava a pedido da irmã e em ELEMENT. a chuva que cai na cabeça de um garoto, parece quase um transe, um tipo de alivio.

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É como se a partir de algumas conquistas pudéssemos respirar um pouco, colocar, as nossas atenções em outra coisa, nos percebermos. É como se estivéssemos tensos o tempo inteiro e uma brecha fora disso nos desse um pouco de elementos para refletir sobre si mesmo.

A concepção de responsabilidade que Troy propaga, como se responsabilidade fosse um dever a ser cumprido, no limite familiar. As representações da masculinidade frustrada é o que vemos em “Fences” e ELEMENT., cada um trabalhando com a frustração de um jeito e cada um com o mesmo véu, um véu chamado racismo, que embora todos vejam, embora esteja na sua cara, há imagens embaçadas e distorcidas.

A polícia, a habitação, o trabalho, a escola, o esporte, todo um conjunto institucional mergulhado no racismo e essa estrutura dificultando ainda mais as vidas dos negros, aumentando as suas frustrações, diminuindo sua vida, elevando a descrença em si mesmo.

O racismo é uma engenharia, em um processo onde o input (começo do processo) é uma pessoa, e no output (fim do processo) é um negro. O corpo negro, o corpo tido como público. ELEMENT. é público, “Fences” é privado.

AS MULHERES

As freiras em ELEMENT. dão o tom da tristeza, automaticamente me remete ao pensamento de mães, solteiras, filhos presos, etc. Uma catarse de situações que são possíveis a essas mulheres negras, no vídeo de ELEMENT.

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A imagem de Rose (Viola Davis), o tempo todo mediando, a relação dos filhos com o pai, sendo uma boa esposa, fazendo a escolha e tendo a agência para estar onde está. A vida que escolheu, negociou e dividiu com o marido.

Cara, que mulherão da porra! Mãe de filhos negros e esposa de um homem negro se torna o ponto de equilíbrio nos conflitos cotidianos. Rose tem total dimensão das escolhas que fez, do que está abrindo mão ao casar, ter filhos etc.

O mais intrigante desse filme é que, embora Rose apareça o tempo todo realizando cuidados com a casa, marido e filhos, a personagem não aparece submissa (não estou falando que ela não passava por opressões, olha lá), é uma personagem que tem meios sutis de lidar, mediar e equilibrar seus posicionamentos, sem precisar desgastar-se tanto. Rose seria o que chamo de felicidade consciente, sabendo de tudo que se abre mão ao estar ali e sabendo tudo o que a espera escolhendo ali.

Tanto ELEMENT. quanto “Fences” traz a questão da masculinidade e da violência exposta a esses corpos. “Fences” com um toque mais sensível, com a preocupação em construir personagens e demonstrar as frustrações ao longo da vida para a chegada dos limites. ELEMENT. se rebelando ao que a mídia e demais meios de comunicação mostram e querem ver dos homens negros.

“Fences”, é um filme longo, é uma peça de teatro adaptada, é um filme que tem histórias em que posso me reconhecer em diversos personagens, ou situações, é um filme sobre cotidiano. E é interessante como essas produções cinematográficas com temáticas explicitamente de vivências negras se situa amplamente em qualquer público, e é visível e notório o protagonismo negro.

E isso, é apenas mostrar as relações humanas e cotidianas dos negros e toda a diversidade e complexidade conferida a qualquer outro humano. Acho que a grande função dessas produções (e não só) tem sido essa, mostrar que todos esses temas são batidos, todas essas situações pertencem ao cotidiano de muita gente, mas que todos tratavam como situações inerentes, da condição do negro.

Ou pior, dentro do espirito do paternalismo escravocrata, a surpresa é que negros sentem, e tem uma gama de complexidades que não terminam em si, se estendem à sua vivência com a violência cotidiana do racismo, intensificando as frustrações em ser.

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